Hospital das Clínicas, outro lado da moeda




ANNA TROTTA YARYD e GILSON CARVALHO


O SUS é patrimônio brasileiro e nossa garantia de que não ficaremos à disposição dos interesses econômicos e do lucro; lutemos para mantê-lo

É assustador ouvirmos que o Hospital das Clínicas do Estado de São Paulo, um dos símbolos da saúde pública do Brasil, pretende quadruplicar o atendimento de convênios e pacientes particulares, sob a justificativa de que isso garantirá a sustentabilidade do atendimento à população em geral.
Profissionais, instalações e equipamentos públicos a serviço do privado, mediante cobrança paralela dos serviços e exames realizados, num Estado que dispõe em sua Constituição que a saúde pública deve ser gratuita.
Sem considerar que muito dinheiro público terá que ser gasto para colocar o hospital público em condições de mercado para atender pessoas que possuem plano de saúde ou se disponham a pagar pelas consultas e procedimentos.
Óbvio. Afinal, quando concordamos em pagar por um plano de saúde, ou mesmo por uma consulta particular, nós estamos dizendo exatamente isso: que não queremos o tratamento que é dispensado pelo SUS aos cidadãos.
Foi o que aconteceu, na prática, com a Fundação Zerbini.
Na década de 90, ao resolver aumentar sua capacidade para atender clientes particulares e de convênio, levantou um vultoso empréstimo com o BNDES, construiu o InCor 2, belíssimo prédio destinado só para esse tipo de atendimento, não conseguiu pagar as contas e a dívida foi assumida pelo governo do Estado, obedecendo àquela velha fórmula de individualização do lucro e socialização do prejuízo.
Mas esse lado da moeda a administração pública insiste em omitir. Nessa relação promíscua, na qual o público assume caráter suplementar ao privado, não só haverá a diminuição da capacidade operacional do atendimento público, mas também a acomodação natural do setor privado.
Hoje já deficitário, ele deixará de investir na ampliação da própria rede, passando a utilizar-se, de forma bastante conveniente, exatamente dos serviços especializados e de alta complexidade nos quais não quer investir, pelo custo elevado.
Se o critério de escolha das seguradoras de saúde e de clientes particulares a serem atendidos no hospital público for o do melhor preço, o que muito provavelmente será, todos nós pagaremos com dinheiro público a garantia de acesso diferenciado daqueles poucos que puderem pagar mais caro pelos planos de saúde.
Ainda tem mais. Para quem não sabe, há mais de dez anos existem dispositivos legais que permitem a cobrança dos procedimentos prestados aos consumidores dos planos de saúde e respectivos dependentes, não só nas instituições públicas como também nas privadas, conveniadas ou contratadas que sejam integrantes do SUS.
Portanto, nada há a justificar a necessidade de maior destinação de leitos e vagas do atendimento público à elite brasileira.
O SUS é patrimônio brasileiro e nossa garantia de que não ficaremos à disposição dos interesses econômicos e do lucro.
Lutemos; caso contrário, o prejuízo será de todos nós.

ANNA TROTTA YARYD é promotora de Justiça do Estado de São Paulo e vice-presidente da Ampasa (Associação Nacional do Ministério Público de Defesa da Saúde).
GILSON CARVALHO é médico pediatra e de saúde pública.
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0606201108.htm

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