Jovens usam as ruas para relembrar ditadura militar


Mudança de nomes de ruas e frases em muros trazem à memória os mortos pelo regime e tentam desmoralizar acusados pelos crimes

Bruna Carvalho, iG São Paulo 
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Foto: Fernando Genaro/ FotoarenaS.L. acende velas em frente ao nº 767 da rua Pio XI, onde ocorreu o Massacre da Lapa em 1976
Eles não foram vítimas diretas da ditadura militar (1964-1985) e, nos anos mais duros do regime, alguns deles nem eram nascidos. Mas isso não impediu que grupos de jovens tomassem conta das ruas e se mobilizassem para denunciar os responsáveis pelos anos de estado de exceção e para homenagear os mortos e desaparecidos da época.
Em São Paulo, traços das ações desses grupos são notados em pontos de ônibus, nas calçadas e nos muros da cidade. Uma das placas da Avenida Brigadeiro Faria Lima foi pintada de preto e, com letras brancas, se tornou AvenidaVladimir Herzog, em homenagem ao jornalista torturado e morto na ditadura, cujo atestado de óbito alegava suicídio.
“O fato de a gente ter um elevado Costa e Silva, uma rodovia Castelo Branco, só prova como somos um povo cuja memória foi roubada. Temos que homenagear os lutadores que permitiram que tivéssemos um País democrático e aberto e não ditadores e torturadores”, afirmou Rafaela Martinelli, 20 anos, integrante do Levante Popular da Juventude, um dos grupos que organiza atos em favor da punição dos crimes de tortura no Brasil.
Harry Shibata, conhecido como “legista da ditadura”, foi alvo de uma dessas ações, denominada escracho, ou esculacho. Esse tipo de movimento, inspirado em atos semelhantes que ocorreram na Argentina e no Chile, visa à desmoralização pública de agentes de repressão, uma vez que, juridicamente, eles não foram punidos.
A não punição dos crimes da ditadura tem como base a Lei da Anistia, que perdoou os crimes cometidos entre 1961 e 1979 e foi validada pelo Supremo Tribunal Federal, em 2010. No entanto, a ONU (Organização das Nações Unidas) quer que o Estado brasileiro trabalhe para punir oficiais que praticaram tortura. 
Shibata é acusado de ocultar um cadáver e assinar laudos falsos que encobriam torturas e assassinatos praticados pelo regime militar. Nas ruas próximas da casa onde ele vive hoje, em Pinheiros, foram colados cartazes denunciando ações do médico. “Sônia Maria de Moraes Angel Jones. Desaparecida política. Shibata atestou que sua morte foi consequência de tiroteio. Na verdade, Sônia foi torturada por 48 horas, estuprada com um cassetete e teve seus seios arrancados”, diz um deles. Em outro, no qual se lê “Alerta vizinho”, é dada a localização da casa de Shibata.
“A ideia é publicar. Mostrar quem são esses caras. Se eles estão impunes e soltos, pelo menos a gente vai enfiar o dedo no seu nariz e falar: ‘Você é um verme. É um ser humano menor’”, conta P.S., uma integrante da Frente de Esculacho Popular, que preferiu não se identificar por temer represálias. “A intenção é despertar a curiosidade, semear o germe. A gente acha que isso, somado a todas as outras lutas, traz informação para as pessoas”, ressalta Rafaela.
No dia 7 de abril, depois de uma passeata, a casa do médico foi pichada, e, no asfalto, uma frase com uma seta: “Shibata, legista da ditadura.”. Rafaela disse que participou do ato, mas não sabe quem pichou a casa. “A ideia era que não tivesse nenhum tipo de depredação. Mas a gente nem sempre pode controlar o que acontece”, disse.
A Frente de Esculacho Popular e o Levante Popular da Juventude são dois grupos distintos, mas há trânsito entre seus participantes em ações organizadas pelos dois movimentos. “(A Frente de Esculacho Popular) começou com um grupo de dez amigos que se mobilizavam, ou por estarem emocionalmente ligados com a causa, ou por serem parentes de vítimas, ou por estudarem direitos humanos. E aí foi crescendo”, conta P.S.
Rafaela explica que o Levante Popular da Juventude nasceu no Rio Grande do Sul, em janeiro de 2012, pautada pelo nascimento da Comissão da Verdade, sancionada pela presidenta Dilma Rousseff em novembro do ano passado. Com o objetivo de “esclarecer as graves violações de direitos humanos” praticadas durante o regime militar, a comissão tem dois anos para apresentar um relatório contendo o resultado das investigações, mas não vai ter um caráter punitivo. Na quinta-feira, foram anunciados os nomes dos integrantes, e, a partir da posse, no dia 16, é esperado que ela comece a funcionar de fato.

Para encerrar o que chamaram de Semana Nacional de Luta por Verdade, Memória e Justiça, de 27 de abril a 3 de maio, a Frente de Esculacho Popular organizou três ações simultâneas na cidade de São Paulo. Uma delas, na rua Pio XI nº767, serviu para relembrar o Massacre da Lapa. Em 16 de dezembro de 1976, a casa onde funcionava a sede do PCdoB foi alvo de uma ação do Exército, na qual foram mortos os dirigentes Ângelo Arroyo e Pedro Pomar. Um terceiro, João Batista Franco Drummond, foi detido e morreu na prisão.Homenagens
No dia 3 de maio de 2012, sete jovens, com idades entre 18 e 30 anos, se reuniram por volta das 20h30 nas imediações da antiga sede do PCdoB para se preparar para a ação. Alguns deles, mais tensos, temiam estar sendo vigiados e falavam baixo sobre o que fariam.
Ao chegarem à rua, para impedir de serem vistos pela polícia, o mais velho do grupo desceu até o fim da quadra, enquanto dois ficaram na outra esquina, de vigia. O combinado era avisar por celular se vissem qualquer movimento suspeito.
Na calçada, em frente ao nº 767, onde hoje funciona um consultório médico, foram feitos seis estêncis com os rostos dos três mortos pintados de vermelho e branco. O mesmo foi feito no muro da casa. Após uma rápida reunião na esquina da rua, decidiram retornar ao local e escrever em branco: “Aqui tombaram heróis da resistência à ditadura – Massacre da Lapa.”
Cravos foram deixados ao lado dos rostos pintados no chão e três velas foram acesas.
Enquanto parte dos integrantes do grupo seguiu para o Tatuapé, na zona leste, de carro, para levar sprays de tinta e cartazes com desenhos vazados que serviriam para a ação de homenagem aos três mortos na rua Serra de Botucatu, os que ficaram na Pio XI, percorreram as ruas vizinhas e deixaram panfletos nas caixas de correio das casas. O texto explicava a história envolvendo a Lapa. “Existe um fato que talvez você não saiba que ocorreu aqui, no seu bairro. Já ouviu falar sobre o Massacre da Lapa?”
Uma terceira ação relembrou a morte de Ísis Dias de Oliveira, militante da ALN, morta em 1972. Na praça onde ela morava e que leva seu nome, também na Lapa, seu rosto foi pintado nos postes da rua, com a cor preta.
“Nunca é tarde para se revelar a verdade”
Hildegard Angel, 62 anos, foi vítima direta dos anos de repressão da ditadura militar. Seu irmão, Stuart Angel, que militava no MR-8, foi morto em 1971 e dado como desaparecido político. Posteriormente, sua mãe, Zuzu Angel, começou a travar uma luta contra o governo para recuperar o corpo de seu filho, quando em 1976 foi morta em um suspeito acidente de carro.
Por acaso, Hildegard presenciou a manifestação contra a ditadura realizada em frente à sede do clube militar, no Rio de Janeiro, onde oficiais reformados comemoravam o aniversário do golpe, em 29 de março. Na ocasião, os cerca de 300 manifestantes, que gritavam “Cadeia já para os fascistas do regime militar”, foram reprimidos pela polícia. Um deles, que jogou um ovo contra um dos militares, acabou preso.
“Esses jovens foram às ruas de maneira destemida, e foi comovente, emocionante. A maioria (dos manifestantes) era jovem. Havia mais velhos também, mas os jovens comoveram porque aquela era uma causa de outra época e eles chamaram para si”, disse ela ao iG.
“Os mais velhos estão cansados de lutar por isso sem ter qualquer resposta. Sem sucesso. Um total insucesso, ao longo de tantos anos. Eu vejo isso de maneira emocionada e comovida.”
Rosto de Ângelo Arroyo, morto durante a ditadura, é pintado na calçada em frente ao nº 767 da Pio XI, onde ocorreu o Massacre da Lapa. Foto: Fernando Genaro/ Fotoarena
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Para Hildegard, os jovens sentem carência de heróis e de missões e é “alentador” que eles abracem essa luta hoje para corrigir o que ela chama de “erro de percurso histórico”. “Essa impunidade crônica tem origem naquele momento histórico. A banalização do ser humano que a gente vê hoje e lê no noticiário, tudo isso, no meu ponto de vista, tem origem naquele momento, quando não se valorizaram as perdas, não se valorizou colocar a Justiça em primeiro lugar.”
Hildegard acredita que as ações praticadas nas ruas podem ser uma alternativa para relembrar os mortos e desaparecidos políticos e pedir por Justiça. “Não acho que se deva afrontar nem exacerbar, mas chega uma hora que é um pote até aqui de mágoa. Houve uma omissão muito grande. E nunca é tarde para se fazer correções históricas nem para se revelar a verdade.” 

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