Órfãos do Massacre do Carandiru começam a receber indenizações



folha de são paulo

Cristina, 40, soube na última sexta-feira que ela e seus dois filhos, V., de 21 anos, e M. de 19 anos, receberão R$ 128.189,86 a título de indenização do governo do Estado pela morte de "Dentinho", um dos 111 detentos massacrados no Carandiru em 2 de outubro de 1992.
Mais de 20 anos se passaram desde aquele dia, quando Cristina, de apenas 19 anos, deixou em casa o filho V., então com um ano, e foi, grávida de três meses, só o dinheiro do ônibus na carteira, para a porta da Casa de Detenção, na zona norte de São Paulo, atrás de informações sobre o companheiro.
Encontrou no Instituto Médico Legal de Pinheiros, zona oeste de São Paulo, depois de percorrer três salões lotados de cadáveres nus com grossas costuras no peito (resultado da necropsia). "Dentinho" tinha os olhos abertos, um tiro entre as sobrancelhas, outros quatro pelo corpo. Ela desabou.
As pernas fininhas da mulher não conseguiam mais sustentá-la em pé. Levada para a escadaria do IML, Cristina --o nome é fictício-- ficou lá, prostrada, sem dinheiro, debaixo da chuva que caía naquele dia.
A reportagem da Folha encontrou-a, mais de 20 anos depois, por indicação da Defensoria Pública de São Paulo, que durante todo esse tempo, e sem que a família tivesse ainda qualquer esperança, levou adiante a ação por danos morais e materiais.
Faxineira, negra, expulsa da casa de sua própria família quando, solteira, soube estar grávida de "Dentinho", Cristina manteve sua dor escondida. Achava que, se contasse aos patrões que seu marido era um dos detentos mortos, eles a demitiriam --"Iam achar que eu era também do crime, e isso eu nunca fui", bateu no peito.
Tanto tempo depois, o bebê V. tornou-se um homem corpulento assumidamente tímido, olhos tristes, sem lembranças do pai. Contenta-se com os relatos da mãe e das tias de que era um pai carinhoso que nunca deixou nada faltar em casa.
"Eu sou diferente dele. Se eu ficasse sem dinheiro, nunca roubaria", diz o garotão que está no último ano do ensino médio. Na sexta-feira à tarde, ele tinha uma entrevista de emprego. Para segurança de banco.
A jovem M. é professora de computação para crianças. A mãe diz que o sonho do pai era ter uma menina e que M. é muito parecida com ele.
"Se ele não tivesse morrido, a casa seria uma palhaçada com os dois falando loucuras", diz Cristina.
"Dentinho foi o amor da minha vida", declara-se a mãe, os olhos enchendo-se de lágrimas (os filhos dizem que ela fala dele o tempo todo). Uma irmã do morto, todos os anos, no dia 10 de janeiro, aniversário dele, faz um bolo e canta parabéns. Outra irmã jura senti-lo perto nas horas de aperto.
Pelo artigo 5º da Constituição, "é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral". Isso, pelo simples saldo de 111 mortos no Massacre, não ocorreu no Carandiru. Mesmo assim, das 111 famílias, apenas 72 entraram com ações na Justiça.
Segundo a professora de Direito Penal Marta Machado, 35, coordenadora do Núcleo de Estudos sobre o Crime e a Pena, da Escola de Direito de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas, de 67 processos, em 64 os pedidos de indenização foram julgados procedentes, ou seja, o Tribunal de Justiça de São Paulo reconheceu a responsabilidade do Estado e determinou o pagamento de indenização.
Em três casos, decidiu-se pela improcedência da indenização. Apesar desse largo placar favorável, as indenizações só começaram a ser pagas em 2011.
Segundo a defensora pública Estela Waksberg Guerrini, a demora deveu-se a uma sucessão de fatores. Primeiro, ao fato de o Estado não ter reconhecido até hoje sua responsabilidade nas mortes. "Houve recursos até as últimas consequências." Depois, as indenizações aprovadas pela Justiça entraram na fila de pagamentos do Estado.
Quando, por fim, chegava a hora dos familiares do Carandiru, surgia a dificuldade extra: "Onde encontrá-los?"
A Defensoria teve de lidar com o fato de muitos dos parentes terem mudado de endereço ou telefone nos últimos 20 anos (vários inclusive voltaram para seus Estados de origem). Depois, havia muitos nomes comuns com sobrenomes Souzas, Silvas e Santos (e sua legião de homônimos). Por fim, vários não tinham documentos ou CPF.
Aparecida, mãe do detento "Stéfano", morreu em 2008 sem nunca ter recebido uma explicação ou indenização, segundo Juliana Pereira, jornalista e integrante da Rede 2 de Outubro, autora do livro "À Margem do Massacre " (Editora Perse).
A família de Cristina não sabe quando receberá e o que fará com o dinheiro. "Seria ótimo para pagar a faculdade de M", cogita a mãe. Sobre o julgamento dos PMs acusados do massacre, que se inicia hoje, eles não tem esperança de haja condenação.
Ed. de arte/Folhapress

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