A história da mulher brutalmente morta que virou mártir no Afeganistão



Reuters: Jovem foi linchada até a morte, depois de ser falsamente acusada de queimar o Alcorão© Copyright British Broadcasting Corporation 2015 Jovem foi linchada até a morte, depois de ser falsamente acusada de queimar o Alcorão Em março, uma mulher de 27 anos foi brutalmente assassinada por uma multidão em Cabul, capital do Afeganistão.
Ela foi espancada com paus e pedras até a morte por um grande grupo, composto em sua maioria por homens, perto de um templo, depois de ser falsamente acusada de ter queimado uma cópia do Alcorão.
O linchamento de Farkhunda Malikzada desencadeou uma onda de luto e vergonha no país, provocou grandes protestos e resultou no julgamento dos acusados. Mas alguns dos condenados tiveram suas sentenças diminuídas e outros já saíram da prisão.
O incidente ocorreu dois dias antes do Ano-Novo afegão. Farkhunda havia prometido à mãe, Bibi Hajera, que ajudaria nos preparativos da festa quando voltasse da aula que participaria naquele dia, uma prática de recitar o Alcorão.
Ela trabalhava como professora voluntária enquanto estudava a lei islâmica, queria se casar e formar uma família, mas também sonhava em ser juíza.
"Farkhunda era corajosa e não tinha medo de falar o que pensava", disse Bibi Hajera.

Filmada

O que aconteceu com a jovem, além de chocar o país, também virou manchete na imprensa mundial.
No caminho de volta para casa, Farkhunda parou no templo Shah-e Du Shamshira, no centro da cidade. Fez orações e então entrou em uma discussão a respeito da venda de amuletos - pequenos pedaços de papel com versos do Alcorão.
Farkhunda argumentava que o gesto seria supersticioso e não islâmico quando o zelador do templo, Zain-ul-Din, começou a gritar: "Esta mulher é uma americana e ela queimou o Alcorão!".
Uma multidão se aglomerou e alguns começaram a filmar com celulares. As imagens são muito chocantes, mas Bibi Hajera assistiu.
Farkhunda, usando um véu, está dentro do portão do templo, negando que queimou o Alcorão.
"Os americanos a enviaram", grita um homem. "Não me chame de americana!", responde Farkhunda. "Se você falar alguma coisa, vou arrebentar sua boca", responde o homem.
Ela ainda pede para não ser filmada, mas o vídeo continua. Farkhunda é então arrastada para fora do templo, jogada no chão e chutada, enquanto a multidão grita: "Mate-a!".
Depois de alguns disparos feitos pela polícia, a multidão se afasta e é possível ver a jovem sentada no asfalto, a coluna reta, o véu foi arrancado, sem um dos sapatos, o cabelo desarrumado, mãos e rosto vermelhos, cobertos de sangue. Aturdida, Farkhunda encara a câmera.
"O que dói o coração é quando ela está sentada assim e a cabeça está sangrando. A polícia fica parada lá. Por que eles não trouxeram um carro, ou uma policial?", pergunta Bibi Hajera.
A polícia desistiu de afastar a multidão. As imagens mostram os policiais assistindo enquanto Farkhunda é jogada no chão, chutada, espancada com pedaços de madeira e atropelada por um carro que a arrastou por 200 metros.
"Eles foram negligentes. Era dever deles evitar que a senhorita Farkhunda fosse martirizada desta forma", disse o general Zahir Zahir, chefe da investigação criminal da polícia de Cabul.
Farkhunda ainda foi arrastada pela rua, jogada em um leito de rio seco e apedrejada. A multidão ainda ateou fogo ao corpo da jovem depois do apedrejamento.

Compartilhamento e apoio

O vídeo do linchamento logo foi publicado e compartilhado na web. Muitas pessoas se gabaram online de terem participado do episódio; outras elogiaram os linchadores.
Apesar de o presidente Ashraf Ghani ter condenado o linchamento e ordenado uma investigação, algumas autoridades apoiaram o crime, incluindo o vice-ministro da Informação e Cultura, Semin Ghazai Hasanzada, e o porta-voz da polícia de Cabul, Hashmat Stanekzai.
No dia seguinte, depois das orações de sexta-feira, alguns imãs importantes do país também apoiaram o linchamento.
A polícia disse à família de Farkhunda que deixasse Cabul por motivos de segurança.
Na noite do dia seguinte ao linchamento, a narrativa mudou. Uma investigação do Ministério de Assuntos Religiosos não encontrou provas de que Farkhunda tivesse ateado fogo ao Alcorão.
Imãs e oficiais recuaram nos comentários de apoio à morte dela e, depois, Hasanzada e Stanekzai foram demitidos.

Da aversão ao martírio

Bibi Hajera, a mãe, se lembra de ir ao necrotério reconhecer o corpo da filha.
"Abri zíper do saco plástico. Disse: 'Farkhunda, minha filha', falei com ela, limpei suas mãos e rosto. As mãos e pés estavam queimados e feridos, o rosto dela estava todo queimado", disse.
"'Por que eles fizeram isso com você, minha menina?' Senti como se ela estivesse me falando: 'Eu era inocente. Eu era inocente, mãe.'"
Farkhunda passou de alvo a mártir. Mais de mil pessoas foram ao seu enterro.
Em um ato sem precedentes para um país onde funerais são eventos apenas para homens, o caixão dela foi levado por mulheres.
"Minhas amigas e eu prometemos umas às outras: 'Não vamos deixar nenhum homem tocar neste caixão", disse a ativista pelos direitos da mulher Sahra Mosawi. "Eles chegaram e nós falamos: 'Não encostem. Onde vocês estavam no dia em que 150 homens atacaram Farkhunda?'."
"Foi a primeira vez no Afeganistão que vi mulheres apoiando umas às outras, juntas."
Dois dias depois, no dia 24 de março, milhares de mulheres e homens protestaram em Cabul, gritando "Somos todos Farkhunda!" e exigindo justiça. Alguns dos manifestantes pintaram o rosto de vermelho, lembrando a imagem da jovem.

Condenação

Quarenta e nove homens foram acusados por envolvimento com o assassinato.
O julgamento foi transmitido pela televisão seis semanas depois. Onze policiais foram sentenciados a um ano de prisão por não terem defendido Farkhunda, oito civis foram condenados a oito anos de detenção e quatro pessoas foram sentenciadas à morte - entre elas Zain-ul-Din, o zelador do templo, e Yaqoob, adolescente que trabalhava em uma loja próxima do local e aparece no vídeo apedrejando a jovem.
Os pais do adolescente condenaram o linchamento e disseram que o filho era um jovem que "perdeu o controle devido ao fervor religioso".
"Se eu estivesse lá, talvez eu tivesse dito a ele que não fizesse aquilo. (...) Mas, ainda assim, se há mil pessoas falando algo, você acaba ficando emotivo", disse o pai, Mohammad Yasin.

Afegãos comuns

Um dos aspectos perturbadores é que os que mataram Farkhunda não eram extremistas religiosos - eram afegãos comuns.
Muitos que aparecem nos vídeos não usam roupas tradicionais, apenas jeans e camisetas. Yaqoob mesmo gostava de boxe e futebol.
"Os homens que atacaram Farkhunda eram, na maioria, aqueles que viveram em Cabul e cresceram durante o governo (do ex-presidente Hamid) Karzai. Aprenderam a usar jeans e parecer modernos, mas a mentalidade em relação à mulher não mudou", disse Sahra Mosawi.
Rula Ghani, primeira-dama afegã, disse à BBC que todo afegão deveria ser obrigado a se perguntar a razão de tal ato ser possível no país.
"Acho que indica que a sociedade afegão está vivendo em um clima de violência há muitos e muitos anos, desde o início da guerra civil. Foi um alerta para todo afegão - para que eles se examinem e digam 'tenho uma mãe, tenho uma irmã, tenho uma filha - quero que elas corram este risco toda vez que saírem à rua?'."
Farkhunda foi declarada oficialmente como mártir, honra geralmente reservada apenas a soldados mortos. A rua onde ela foi morta foi rebatizada com seu nome.
Mas houve decepção entre os que protestaram gritando "Somos Farkhunda!" e esperavam que a morte da jovem mudasse o país.
Nenhuma nova lei foi criada para evitar a violência contra as mulheres.
No mês passado, a corte de apelações de Cabul revogou as sentenças de morte dos quatro homens em uma sessão a portas fechadas. Três foram condenados à 20 anos de prisão e Yaqoob, a dez.
Os 11 policiais presos já foram libertados sob fiança, segundo a Promotoria de Cabul. Najla Raheel, advogada da família de Farkhunda, disse que quatro foram absolvidos e todos já voltaram ao trabalho, no Ministério do Interior.
A história de Farkhunda destaca, entre outras coisas, um clima generalizado de misoginia na sociedade afegã.
E, apesar da resposta à morte dela ter mostrado que há afegãos que querem mudança, ativistas dizem que avanços reais podem levar pelo menos uma geração.
"Temos que continuar lutando para melhorar as coisas. Pois, no fim, este país tem que ser melhor do que isso", disse Sahra Mosawi.



Postar um comentário

0 Comentários