Pichação, arte e higiene em São Paulo





TRENDR

O picho representa a mesma controvérsia que o dadaísmo causou no século XX.


G1.com

Em 1917, Marcel Duchamp comprara um mictório de uma casa de construções. Assinou o mesmo como ‘R. Mutt’ e o expôs como obra de arte. A peça, intitulada Fonte, é uma das mais famosas obras de arte moderna, e também é um dos ícones do movimento internacional Dadá.
A vanguarda dadaísta se consagrou como uma das mais proeminentes — e polêmicas — vanguardas. Seus artistas acreditavam que a única esperança para a sociedade (profundamente abalada pela Primeira Guerra Mundial) residia na completa subversão dos valores políticos, sociais e artísticos ostentados pela burguesia. Falar de dadaísmo é falar também do primitivo, da anarquia, do irracional.

Fonte, por Marcel Duchamp (1917)

A intenção desses artistas era claramente política. Como é que a civilização mais racional, mais ‘culta’ e mais civilizada provocou duas Grandes Guerras? De que serve essa razão iluminista, afinal? Nossa barbárie, travestida de civilização, criou uma sociedade doente, fascista e louca. A subversão completa das noções de razão e beleza, por exemplo, eram a força motriz desse movimento que escandalizou a Europa da primeira metade do século XX.
Tristan Tzara, no Manifesto Dadá, de 1918, nos diz:
Há um grande trabalho negativo de destruição a ser realizado. Precisamos varrer e limpar. Afirmar a limpeza do indivíduo após o estado de loucura, agressiva e completa loucura de um mundo abandonando nas mãos de bandidos, que se despedaçam uns aos outros e destroem os séculos.
A natureza do choque e do movimento político dos dadaístas — como de muitas outras vanguardas — foram abafadas durante o império nazista, que fez questão de livrar do ocidente a sujeira cultural bolchevique e judia que era a arte moderna, aos olhos de Hitler. O ápice desse processo foi a Entartete Kunst, exposição alemã que se encerrou com mais de cinco mil peças de arte destruídas pelos nazistas.
As vanguardas já não existem mais. A arte contemporânea que conhecemos hoje faz uso constante dos readymades dadaístas em suas obras, mas o ethos político de outrora não ficou preservado. As obras atuais disponíveis nas grandes galerias e leilões de arte não são subversivas, mas existem enquanto instrumentos de reprodução de uma lógica mercadológica, isto é, são feitas assim porque vendem, e vendem muito...
Do lado de fora dessas luxuosas instituições, transcrições primitivas cobrem os muros das cidades, portando um discurso mais politizado do que as telas das galerias. Tanto o picho quanto o grafite refletem a condição da arte política na atualidade. São ambas expressões que gritam aos olhos dos transeuntes mensagens que não vão encontrar em suas televisões. São expressões de classe, de gênero, de identidade, enfim, expressões políticas que incomodam na mesma intensidade que as exposições modernas e, ainda, suscitam as mesmas dúvidas: “será que isso é arte?”.
Essa reflexão tem motivos muito claros. O Programa SP Cidade Linda, promovido pelo atual prefeito de São Paulo, João Doria (PSDB). O nome do programa é muito interessante, aliás, por evocar o conceito de beleza como instância de legitimação da destruição artística “feia, vil e marginal” dos artistas de rua. O mesmo critério, diga-se de passagem, que legitimou a censura da arte moderna em países como Alemanha, Rússia e Itália, por exemplo.

Avenida 23 de maio — SP

O que tenho chamado a atenção neste texto é que o critério de beleza deixou há muito tempo de servir como instrumento de motivação criativa dos artistas e que, nos últimos tempos (tendo em vista esse caso) ele está cada vez mais a serviço de interesses políticos dominantes. Nesse sentido, a relação entre a arte e a política toma traços cada vez mais fortes.
De um lado, os dominantes com seu embelezamento da política como instrumento de repressão. Do outro lado, os artistas politizados, reagindo e resistindo na metrópole paulistana.


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