Sobrevivente relata tragédia no Centro



Serralheiro conta os últimos momentos ao lado da esposa que morreu soterrada pela queda de parede na Comendador Oeterer


Carlos Araújo 
carlos.araujo@jcruzeiro.com.br 


O serralheiro Anderson Shendroski Assunção, de 26 anos, é o único sobrevivente da tragédia da rua Comendador Oeterer, no centro de Sorocaba, ocorrida no último dia 20, quando quatro carros e uma moto foram soterrados e sete pessoas morreram no desabamento parcial de uma parede de 10 metros de altura da obra do futuro shopping Pátio Cianê. Após seis dias de internação, inicialmente no Hospital Regional e depois no Hospital da Unimed, ele recebeu alta anteontem. Se sobreviver foi um destino, a volta para casa é um novo desafio porque sua esposa, Samantha Bianca da Conceição Shendroski, de 24 anos, morreu na tragédia. Restaram as lembranças de um casamento feliz de três anos e um turbilhão de emoções como resultado dos muitos planos interrompidos naquela noite de quinta-feira. 

Aquele foi um dia comum. Anderson saiu de casa bem cedo para trabalhar na Scorpios, uma das empresas sistemistas da multinacional Toyota, e saiu às 17h. Um colega de trabalho chamado Maicon lhe deu carona e às 17h30 o deixou em casa, no Jardim Paulista 1, zona norte da cidade. Anderson pegou o seu carro, um Fox prata 2005, e levou o veículo para um serviço de alinhamento e balanceamento no Jardim São Guilherme. Concluído esse serviço, ainda cortou o cabelo no São Guilherme. Em seguida, fez contato com Samantha, que saiu às 18h da empresa do setor automotivo Abrão Reze, onde trabalhava como auxiliar administrativo. Os dois combinaram de se encontrar na cidade para fazer compras para uma viagem de fim de ano a Bertioga, no litoral paulista, onde já tinham reservado uma pousada. 

Nesse período de tempo, quando soube que Samantha tinha chegado ao terminal Santo Antônio, Anderson falou para ela não entrar no terminal e esperá-lo no final da ponte do Viaduto dos Ferroviários, que liga as duas partes da Comendador Oeterer separadas pela via férrea da antiga Estrada de Ferro Sorocabana (EFS). O combinado deu certo. Era por volta das 19h e o trânsito estava lento naquele local, a poucos metros do semáforo que dá acesso à rua Álvaro Soares. Samantha estava parada após o viaduto, na calçada. Anderson deu sinal de luz para ela e a identificação do veículo foi imediata. Ela entrou no carro e, como habitualmente, beijou o marido. 

Aldo V. Silva

Tragédia / Desabamento de parede da antiga Cianê.
Anderson Shendroski Assunção, de 26 anos, conta em detalhes como aconteceu a tragédia 


Menos de cinco minutos 


Havia três ônibus à frente. O Fox de Anderson era o terceiro carro a partir do último ônibus, que fazia a linha do Jardim São Guilherme. À frente de Anderson e Samantha estava outro carro com duas mulheres, Nhayara Pâmela Airola, de 25 anos, e Evelin Cristina Siqueira, de 30 anos, que seguiam com o filho de Evelin, Tiago, de 5 anos. Nesse instante o semáforo abriu. Os dois primeiros ônibus avançaram e entraram na rua Álvaro Soares. O último ônibus continuou na rua Comendador Oeterer, seguido de dois carros e mais o terceiro veículo, dirigido por Anderson. Um motociclista estava parado no corredor entre os carros, do lado esquerdo, entre Anderson e o carro que ia à frente com as duas mulheres e o garotinho. 

Eram os últimos momentos de vida das sete vítimas. Do momento em que Samantha entrou no carro até que o trânsito avançou e parou novamente, transcorreram menos de cinco minutos em um espaço de 50 metros. Entre o casal que ocupava o Fox, a ansiedade estava por conta das compras que fariam. Começou a garoar e a chuva aumentou. Anderson viu quando o garotinho do carro à frente, que estava numa cadeirinha, deu "tchau". E comentou com Samantha o gesto do menino. De repente, tudo escureceu. 

Exemplos de solidariedade 


Anderson quis ver o que fechou a sua visão. Tentou se movimentar debaixo dos escombros, não viu mais nada, perdeu o sentido. Ouviu uma voz que falava "Vou te puxar". Alguém o pegou pelos braços. "Está sentindo dor?", a voz perguntou. Ainda sem enxergar, Anderson disse que suas pernas estavam presas. De alguma forma conseguiram tirá-lo dos destroços do carro esmagado. Acordou no Hospital Regional e não se lembra de mais nada. 

Um dos homens que o ajudaram foi ao Hospital Regional, identificou-se também como Anderson e falou que segurou a sua mão. No local do acidente, o homem perguntou se ele estava vivo e, em resposta, ele, vítima, não respondeu, mas apertou a mão que o segurava. Um segurança tentou contato com Samantha. Ela ainda estava viva. Com a mão na bolsa, ela tirou o celular, entregou-o ao segurança e disse para ele ligar para "Amandinha" - Amanda, irmã dela. O contato foi feito e Amanda, segundo Anderson, pensou que fosse trote. O segurança falou para Samantha ter calma e disse que iria ajudá-la. Tentou ajudá-la a respirar. Ao tocar nela, ela respirou e morreu. A suspeita de trote foi esclarecida porque um cunhado se dirigiu rapidamente de moto ao local do acidente. 

Esses detalhes foram relatados pelo segurança a Anderson. O segurança o procurou no hospital para conhecê-lo. Nas primeiras horas, Anderson não sabia da morte de Samantha. Para preservá-lo emocionalmente, sua mãe, Raquel Shendroski, de 48 anos, chegou a dizer que Samantha estava em outro hospital. Anderson, desesperado, perguntou a todo momento pela esposa: "Cadê a Samantha? Ela morreu, não é, mãe?" Chegavam outros pacientes, e ele perguntava: "É a Samantha? Responde, quero te ouvir." A resposta era o silêncio. "Se ela estivesse bem, automaticamente ela ia responder", ele pensava. Foi o irmão dele, Elvis Shendroski Assunção, o encarregado de dar a notícia na madrugada do dia seguinte. Anderson foi liberado pelos médicos para ir ao velório, na igreja Assembleia de Deus do Jardim Guadalupe, e voltou para o hospital. Samantha foi sepultada na manhã de sábado, dia 22. 

Anderson quebrou quatro costelas e deslocou a clavícula do lado direito. Segundo Elvis, a construtora Fonseca & Mercadante assumiu o custo do sepultamento de Samantha. Nada além disso. Até ontem Anderson não havia sido procurado pela empresa para qualquer tipo de assistência. Ele comprou remédios com seus próprios recursos e se prepara para enfrentar despesas com transportes para ir ao médico. Ganhou atestado médico de 21 dias para ficar em repouso e, nesse período, tem 15 dias para consulta com o ortopedista e outras providências burocráticas em relação a Samantha.


'Nada que me derem vai substituir minha esposa', afirma Anderson
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Aldo V. Silva/Reprodução
Tragédia / Desabamento de parede da antiga Cianê.
Anderson e Samantha em foto recente tirada em Bertioga
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Sobre as providências jurídicas a respeito do acidente e da morte de Samantha, Anderson Shendroski Assunção disse: "Nada que me derem vai substituir minha esposa. Mas eu tenho que ser justo. Não foi só minha família que foi destruída, teve outras famílias." Levou em conta que, se fosse ele que estivesse errado no acidente, iam cobrar sua responsabilidade. "Ainda não parei para pensar, estudar o caso, mas o que aconteceu comigo não tem o que pague."

Ele lembrou que a palavra "viúvo" evoca naturalmente um senhor que, a partir de uma longa vida, perde a esposa na faixa dos 70 ou 80 anos. E ele, aos 26 anos, está viúvo. E ela tinha apenas 24 anos. 

"E aí, por quê?", perguntou Anderson. E, referindo-se à vida com Samantha, refletiu: "Acabamos de casar, três anos de casamento. Nesses três anos construímos casa, compramos carro...". Ela acabava de prestar o vestibular da Universidade Paulista (Unip) para o curso de Gestão Financeira. E ele tinha planos de fazer o curso de frezador mecânico no Senai. 

"Não tenho filho, mas estou no auge, estou começando a construir minha vida agora", comparou. "Tenho minha casa, meu carro, estava procurando uma estabilidade financeira num emprego bom. Depois eu iria pensar em filhos, estava construindo minha vida. Meus planos estavam a mil." Surgiram então os planos para passar o fim de ano na praia, em Bertioga.

"Você tem planos para a sua vida, você traça metas para serem cumpridas na vida", acrescentou. "Aí, do nada, pá. E aí? Cadê meu sonho? Minha esposa não está comigo para passar o final de ano. Minha esposa não vai concluir sua faculdade. Minha esposa não vai poder me dar um filho. Minha esposa não vai poder usufruir do carro que ela comprou também. E eu estou como? Chego em casa, cadê minha esposa? Chego do serviço, cadê? O que paga? Não paga. Vai construir outra esposa pra mim? Mulheres tem várias, mas igual a ela, tem? O ser humano é único. O amor, o afeto que cada um dá é único."

Quando reentrou em casa, após ter recebido alta do hospital, foi à sala, à cozinha, ao quintal, à sala do computador, mas evitou entrar no quarto: "Não consegui entrar no meu quarto." Era o local onde a via no cotidiano da rotina diária.

"Minha vida foi trabalhar em torno dela para dar o melhor, porque achava que ela merecia", afirmou. "Um homem tem que trabalhar muito para que ela não precise trabalhar e ela ter tudo do bom e do melhor. Mas o mundo de hoje é difícil, faz com que os dois trabalhem."
Mostrando fotos de Samantha em diferentes ocasiões de família e viagens, Anderson a descreveu como uma pessoa com alegria de viver, espontânea, dinâmica. "Era uma união, éramos ligados no 220", disse. "Uma união, uma sintonia. Às vezes eu ligava para ela e ela falava, "eu estava discando pra você". Era muita união."


Anderson acredita que falha e negligência causaram acidente

Pedro Negrão
desabaaa
Para sobrevivente, que perdeu a esposa, a responsabilidade é de todos os que trabalhavam na obra

Anderson Shendroski Assunção acredita em falha e negligência como explicação para as causas do acidente, e também acha que a Prefeitura teria que fiscalizar a obra "por obrigação". "Até um servente sabe que tudo o que você está montando ou desmontando, no mínimo você tem que isolar o local e travar as coisas que são perigosas ou não", disse. Veja trechos da entrevista concedida ao Jornal Cruzeiro do Sul:

Cruzeiro do Sul - Houve falha ou foi fatalidade?

Anderson Shendroski Assunção - Falha. Porque hoje em dia, acho que até um servente sabe que tudo o que você está montando ou desmontando, no mínimo você tem que isolar o local e travar as coisas que são perigosas ou não. Você enche uma laje sem colocar uma escora? Também você não tira uma laje sem escorar as paredes. Um engenheiro que estudou cinco anos não sabe isso, e um servente que não estudou sabe, como que fica? Pra que estudar? Põe um servente lá, que faz melhor. O que segurava aquilo? Era um barracão. Era só o quadrado com o telhado. Tirou o telhado... Olha o buraco, a fundura que a escavadeira fez do lado de dentro. Você acha que não tirou a total proteção do muro? Cadê a fundação do muro? Onde foi parar? Ah tinha um metro de terra... um metro de terra segura um muro de 100 metros de altura por 400 de extensão? É muito grande aquele muro...

CS - O Roberto Montgomery, coordenador da Defesa Civil e secretário de Segurança Comunitária, disse que a fiscalização só é feita quando há denúncia. E o prefeito (Vitor Lippi) disse que a Prefeitura não é obrigada a fiscalizar obra.

Anderson - Ah, não, só depois que morre quer fiscalizar. Então hoje, seu eu for construir aqui, vai vir fiscal, ele não tem que liberar minha construção? Numa obra trabalham funcionários, precisa de funcionários para trabalhar, para erguer uma estrutura. Então não existe risco? E se pega funcionários?

CS - A Prefeitura tinha que fiscalizar?

Anderson
 - É por obrigação. Então uma vida não vale? Uma vida não vale, como se fosse qualquer um? Vale muito. O cara não pode bater um prego se não sabe trabalhar com martelo, se não ver se a área não está isolada, se não está boa, adequada. Uma vida vale muito.

CS - Você acha que houve negligência?

Anderson - Eu aposto que houve (negligência). "Se a gente cavar aqui não vai abalar o muro?", com certeza teve essa pergunta. Se o cara falar pra mim que não saiu essa pergunta, então todo mundo lá não sabia o que estava fazendo. "A gente vai tirar (terra) rente ao muro, não vai abalar? Você que é engenheiro: "Eu posso tirar?"

CS - E de quem é a responsabilidade?

Anderson - De todos. Dentro de uma obra não sai uma ordem sem todos estarem sabendo. Atrás de mim tem o dono da obra, o engenheiro da obra, o cara que desenhou a planta. Tem muita gente até chegar no funcionário para tirar aquilo ou construir aquilo. Quem deu essa ordem? Foi por conta? Ele recebeu uma ordem.

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