“Bolsa Família fez uma grande diferença em casa”, diz Dorival Santos, catador de lixo que virou doutor


DCM
Publicado em 22 julho, 2018 9:56 am
De Dorival Santos em depoimento a Juliana Dal Piva na Revista Época.
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Minha pesquisa desde a faculdade é na área da linguística, uma ciência nova, foco de estudo nos últimos 100 anos, mas no Brasil até um pouco menos do que isso. Em minha tese, abordo a semântica, uma área da linguística. Estudo como o ser humano significa as coisas que ele percebe no mundo e como ele se expressa pela linguagem, qual a relação da palavra. Meu foco são os verbos de movimento. Por meio da linguagem a gente faz tudo. É inerente ao ser humano. Ela revela o que você é.
Mas essas reflexões eu comecei a fazer mesmo antes de entrar na academia. Nasci e cresci no bairro dos Moreiras, na periferia de Piedade, no interior de São Paulo. Era uma bairro de gente humilde, pobre mesmo. Aprendi a ler muito cedo, fui alfabetizado por minha mãe, Crelia Oliveira, quando tinha uns 6 anos de idade. Ela recolhia livros e gibis descartados e me ensinou as sílabas das palavras a partir de historinhas da Turma da Mônica, do Tio Patinhas e do pistoleiro Tex Willer. Nessa época, ela e minhas duas irmãs mais velhas já trabalhavam em um lixão que ficava na Rodovia Raimundo Antunes Soares (SP-79), no caminho que leva de Piedade a Sorocaba, também em São Paulo.
Eu ia à escola, mas foi em casa que aprendi a ler e ganhei gosto e hábito de leitura. E foi nesse período que também precisei trabalhar com elas na separação do lixo descartável. De manhã eu ia para a aula na Escola Estadual Maria Paula. Muitas vezes eu não conseguia escrever de dor, porque meus dedos estavam cortados e não era incomum que meus cadernos tivessem manchas de sangue.
Os tempos na escola, especialmente na infância, não foram fáceis. De vez em quando eu ouvia os colegas dizerem “lá vem o lixeiro”. Outros faziam questão de dizer que eu estava usando uma roupa que eles tinham jogado fora e que eu, sem saber, tinha catado entre os materiais descartados. Eles podiam comprar, mas minha roupa surrada era a achada no lixo, assim como, em alguns dias, meu café da manhã era disputado com os urubus e cães. Eu sempre sentava no fundo da sala, sozinho. Enquanto eles estavam brincando, eu estava trabalhando.
Quando o sino soava para marcar o fim das aulas, eu descia e subia as ladeiras caminhando por mais de uma hora até o lixão. No caminho, já aproveitava para verificar o que podia ser recolhido de material reciclável das lixeiras da cidade. Os colegas de turma viam aquilo com espanto e nojo.
Por isso, fui aprendendo aos poucos o que era ser invisível. Só entre nós, garimpeiros, não éramos invisíveis. É assim que nos tratamos, como garimpeiros. O trabalho no lixão me ensinou que neste mundo a gente está para sobreviver. Se eu não trabalhasse, a gente ia morrer fome. Além de minhas duas irmãs mais velhas, meus pais tiveram mais dois filhos, e meu pai era muito ausente. Não lembro bem quanto a gente ganhava quando eu era criança, mas nos últimos tempos, em 2006, eram R$ 75 por semana.
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Eu pedia os livros, e os que estavam em bom estado eu levava para casa. Meu intuito era fazer uma biblioteca comunitária. No começo, montei umas prateleiras no meu quarto e fui catalogando. Cheguei a 900 direitinho. Depois ficou complicado e fui separando só por autor. Cheguei a ter uns 3 mil livros.
Desses que eu achei no lixão tenho até hoje Vidas secas, de Graciliano Ramos, que é o livro de minha vida. Também guardo três do Machado de Assis (Memórias póstumas, O alienista, Esaú e Jacó), Sagarana, de Guimarães Rosa, Madame Bovary, de Honoré de Balzac e Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez.
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