Docentes da USP criticam criação de Cátedra Otavio Frias Filho pela Folha

 


“Projeto ancorado no Instituto de Estudos Avançados prevê ‘a criação de um centro de pesquisas e disseminação do conhecimento sobre o papel da comunicação, em especial o jornalismo’, mas o Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes não foi sequer consultado”, afirma o Adusp em nota

(Foto: Marcos Santos/USP Imagens)
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247 - A Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo (Adusp) divulgou nesta quinta-feira, 25, uma nota com críticas à criação da Cátedra Otavio Frias Filho, anunciada na última sexta-feira, 19, pela Folha de S.Paulo, quando o jornal completou 100 anos de vida. Confira nota do Adusp:

Cátedra do IEA com a “Folha” suscita indagações sobre autonomia da USP e subordinação ao mercado

A Reitoria da Universidade de São Paulo e o jornal Folha de S. Paulo anunciaram, em 19/2, a criação da “Cátedra Otávio Frias Filho”, que deverá desenvolver “estudos nas áreas de comunicação, democracia e diversidade” e será sediada no Instituto de Estudos Avançados (IEA-USP). O lançamento marca o centenário da Folha de S. Paulo e foi objeto de amplas matérias no próprio jornal e também na publicação oficial da universidade.

De acordo com o Jornal da USP, o projeto prevê “a criação de um centro de pesquisas e disseminação do conhecimento sobre o papel da comunicação, em especial o jornalismo, para a manutenção e o constante fortalecimento da democracia, incluindo os direitos das minorias e contra os diferentes tipos de discriminação, bem como outros fenômenos relacionados, como os novos populismos, que ameaçam o Estado democrático de direito”.

Sócio da empresa e diretor de redação da Folha de S. Paulo por décadas, Frias faleceu em 2018, aos 61 anos, vítima de câncer. “A Cátedra valoriza o legado de um notável advogado e jornalista formado na USP. A parceria entre a Folha e o Instituto de Estudos Avançados cria uma plataforma ideal para fomentar novas ideias acerca da convergência entre essas três questões que moldarão o futuro da sociedade”, disse o diretor do IEA, Guilherme Ary Plonski, ao Jornal da USP.

“Anualmente, a Cátedra contará com a participação de um catedrático, de notória trajetória na área, que será responsável pela organização de um ciclo de palestras mensais, cujo conteúdo será transformado em um livro”, explica a publicação oficial da USP. Os catedráticos serão indicados pelo Comitê de Governança, constituído por Plonski, Luiz Frias (publisher da Folha), Sérgio Dávila (diretor do jornal) e pelos professores André Chaves de Melo Silva, coordenador acadêmico da Cátedra, e Claudio Júlio Tognolli, coordenador-adjunto. Ambos são docentes da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP). Um sexto integrante será indicado pelo IEA.

Além do Comitê de Governança, outros dois colegiados farão parte da Cátedra, segundo o jornal: um comitê executivo e um conselho consultivo, “todos com participação tanto da Folha como da USP”. Mais ainda: “É parte da proposta a criação do Prêmio Otavio Frias Filho de Jornalismo, para trabalhos acadêmicos e de comunicação relacionados ao tema”.

Outras informações que constam da matéria da Folha de S. Paulo (mas não do texto do Jornal da USP): a Cátedra contará com dez pesquisadores permanentes, “que não se restringem ao jornalismo e vêm de departamentos [sic] tão diversos quanto o Instituto de Biociências (IB) e a Escola Politécnica da USP”, e “o plano de trabalho prevê a criação de uma disciplina de pós-graduação sobre comunicação, diversidade e democracia”.

Institucionalmente, Escola de Comunicações e Artes não participa do projeto

Não há evidências de que a ECA ou seus departamentos, em especial o Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE), tenham sido consultados ou envolvidos institucionalmente no projeto, embora dois docentes da unidade, ambos do CJE, integrem a coordenação da Cátedra. O professor Tognolli, por sinal, atualizou seu currículo Lattes em 13/2, para fazer constar sua participação na iniciativa do IEA. “É idealizador e um dos responsáveis pela Cátedra Otavio Frias Filho, a operar no Instituto de Estudos Avançados da USP, com inauguração a 18/2/2021, data em que o Grupo Folha completa 100 anos”, anotou ele na apresentação.

Jornalista e fundador da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), nos últimos anos Tognolli tem sido objeto de protestos e controvérsias dentro e fora da ECA. Um caso marcante ocorreu em junho de 2016, quando apresentava o programa radiofônico Jovem Pan Morning Show, chamou de “burra” a jornalista Helen Braun, que dividia o estúdio com ele.

Em fevereiro de 2017, envolveu-se na divulgação, eticamente questionável, de uma tomografia de dona Marisa Letícia, esposa do ex-presidente Lula, então internada em estado grave no Hospital Sírio-Libanês, na capital paulista. Posteriormente, o próprio Tognolli revelou que seu gesto deu ensejo a reclamações contra ele na Ouvidoria da USP.

No mês seguinte, o Centro Acadêmico Lupe Cotrim (CALC), da ECA, expressou “total repúdio ao prosseguimento da docência do professor Cláudio Tognolli” no CJE, porque, alegou, um docente “que já assediou alunas e que silencia mulheres não deve fazer parte do grupo de educadores de uma universidade pública que se pretenda plural e democrática”.

Em 2018, depois que o desembargador Rogério Favreto, do Tribunal Regional Federal de Curitiba (TRF-4), concedeu habeas corpus a Lula, Tognolli divulgou em post na rede social Twitter o número do celular de Favreto. O post que expôs o desembargador a ameaças foi repudiado por nota do então chefe do Departamento de Jornalismo da ECA, professor Dennis de Oliveira.

“Acredito que o debate político e jurídico não pode ser feito a partir dessas tentativas de criar linchamento de pessoas”, declarou Oliveira na nota. “Esse não é o jornalismo que ensinamos na ECA e essa postura não corresponde à visão do curso de jornalismo da USP que temos implementado”.

O Informativo Adusp encaminhou ao professor Tognolli duas perguntas sobre os atos apontados acima e sua participação na Cátedra. As respostas, que não chegaram até o fechamento da matéria, serão publicadas assim que  sejam recebidas.

Disciplina sobre agronegócio e aproximação com entidade do setor

O professor Melo Silva, incumbido da coordenação acadêmica da Cátedra, oferece atualmente cinco disciplinas de graduação na ECA, conforme consta do seu Lattes. Ele é o responsável por disciplinas como “Jornalismo Científico” e  “Jornalismo em Agrobusiness e Meio Ambiente no Brasil”. Esta última desenvolveu uma forte parceria com a Associação Brasileira de Agronegócio da Região de Ribeirão Preto (ABAG-RP), entidade que promove os interesses do empresariado rural.

Entre as ações desenvolvidas pela associação há um programa denominado “Agronegócio na Escola”, voltado para o ensino médio e definido por ela como “uma importante ferramenta para auxiliar os professores no cumprimento das diretrizes da Base Nacional Comum Curricular (BNCC)”, ou seja, “construir o conhecimento a partir da realidade e das oportunidades do agro”. Quanto ao ensino superior, a ABAG-RP mantém um prêmio anual de jornalismo, que contempla estudantes da profissão na categoria “jovem talento”.

Entre 2014 e 2018, onze alunos e alunas da disciplina oferecida por Melo Silva receberam o “Prêmio ABAG-RP de Jornalismo José Hamilton Ribeiro”, conforme o docente indica na seção “Prêmios” do seu Lattes. Numa das cerimônias de premiação, a associação homenageou a Rede Globo “pela criação e veiculação da Campanha ‘Agro: a indústria-riqueza do Brasil’”, que se notabilizou pelo slogan “O agro é pop”, objeto de ácidas críticas dos movimentos sociais. 

O Informativo Adusp encaminhou ao professor Melo Silva algumas questões, que não foram respondidas até o fechamento desta matéria. A reportagem solicitou esclarecimentos, ainda, ao diretor do IEA e ao diretor da ECA, professor Eduardo Martins. Todas as respostas serão publicadas tão logo sejam recebidas.

“Assumimos a chefia no dia 8 de dezembro de 2020 e, desde então, o Departamento de Jornalismo e Editoração não foi consultado a respeito da criação da Cátedra Otávio Frias Filho durante as reuniões do Conselho”, declarou o professor Luciano Maluly, chefe do CJE, em resposta às questões que lhe foram enviadas pelo Informativo Adusp. 

“Desconhecemos como se deu a escolha dos docentes da ECA e mesmo se houve escolha na ECA”, afirmou Maluly. Instado a opinar sobre o projeto da Cátedra, declinou: “Não tenho informações suficientes para avaliar essa iniciativa do IEA. Como chefe do Departamento de Jornalismo e Editoração, meu compromisso é tomar decisões com o órgão colegiado que presido e que representa o departamento”.

“Universidade tem que fazer a crítica permanente do mercado”

A iniciativa do IEA corresponde à visão de “empreendedorismo acadêmico” e de aproximação do mercado predominante na Reitoria. A Cátedra será um “organismo híbrido” gerido em parceria com uma influente empresa de mídia, cujo jornal coincidentemente é o mais lido pelos docentes da USP. Cabe perguntar como ficará a proclamada isenção da Folha de S. Paulo na cobertura dedicada à universidade.

Por outro lado, a ideia de criar, no âmbito da Cátedra, uma disciplina de pós-graduação “sobre comunicação, diversidade e democracia” ecoa uma prática já existente na ECA, de oferecer disciplinas do curso de jornalismo cujo conteúdo é determinado ou influenciado por empresas de mídia, de modo eventualmente contraditório com os pressupostos de formação crítica do profissional jornalista.

“A princípio a aproximação da universidade com as empresas não é um problema em si. Mas temos que considerar que a USP possui uma natureza pública. No caso específico de uma empresa jornalística, a aproximação com a academia, por meio de uma cátedra, envolve algumas questões a serem consideradas”, pondera um docente da ECA que prefere não ser identificado.

“O jornalismo tem uma missão de fiscalização do poder e o curso de jornalismo deveria questionar a imprensa. Uma cátedra como essa teria essa autonomia? A universidade, pelo seu caráter público, não pode virar correia de transmissão do mercado. É o contrário! Tem que fazer a crítica permanente dele. É a única instituição capaz de exercer essa fiscalização com autonomia. Aliás autonomia de pensamento é fundamental para a universidade”, sustenta.

Outra questão, diz ele, é o jogo de interesses: “O uso marqueteiro que podem fazer tanto os acadêmicos e gestores ligados à iniciativa (ao dizer que tem convênio com um jornal importante), quanto o jornal, mostrando sua aproximação com uma universidade de renome. No caso específico da Folha de S. Paulo temos um histórico conturbado de uma cobertura, no mínimo, atrapalhada. Muito rigorosa para com a universidade pública e completamente leniente para com a universidade privada, não por acaso um setor que é grande anunciante”.

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