Relatos expõem ‘ciência’ da tortura na ditadura militar


 - Atualizado: 01 Maio 2016 | 07h 01

Arquivo da Cruz Vermelha aberto após conclusão da Comissão da Verdade reforça tese de uso da repressão como política de Estado

Sessões de espancamento acompanhadas por métodos para prolongar o sofrimento da vítima, um cronograma de ataques e até um jacaré colocado em celas. No regime militar, as práticas de torturas receberam um tratamento “científico” por parte dos autores dos crimes, segundo relatos contidos em documentos coletados pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha em Genebra.
O ex-presidente da UNE, Jean Marc Von der Weid, foi torturado
O ex-presidente da UNE, Jean Marc Von der Weid, foi torturado
Estado teve acesso pela primeira vez aos arquivos do Comitê Internacional da Cruz Vermelha sobre o Brasil em sua nova fase de abertura de documentos. Nos 17 mil informes registrados entre 1965 e 1975 guardados em Genebra, a entidade manteve dezenas de documentos sobre o período mais sombrio da ditadura no Brasil.
No auge da repressão no Brasil, nos anos 1970, o comitê atuou para tentar garantir os direitos humanos dos prisioneiros. Esses relatos, segundo a Cruz Vermelha, são uma evidência do caráter institucional que as violações tiveram durante o período de maior brutalidade da ditadura no País. A entidade jamais foi autorizada a visitar os centros de torturas.
Os informes não puderam ser consultados pela Comissão Nacional da Verdade, que concluiu seus trabalhos em dezembro de 2014, antes de a entidade ter aberto seus arquivos.
‘Método’. Em 21 de janeiro de 1970, o comitê apresenta documentos detalhados das práticas contra prisioneiros políticos, escritos em português por ex-prisioneiros ou fontes que aceitaram, de forma anônima, repassar à entidade informações.
Em praticamente todos eles, é o caráter organizado e “científico” da tortura que é destacado. “A grande maioria dos presos passa por um processo de torturas físicas, morais e psicológicas. De acordo com a gravidade do caso ou a pressa em se obter informações, são colocados em cubículo isolados, em celas isoladas ou em celas coletivas (em ordem decrescente se importância)”, diz o relato.
“O método aplicado é o científico. Baseia-se na aplicação dosada de um sofrimento atroz dentro do limite exato da resistência humana. Para tanto, os cuidados médicos são constantes, para verificar o grau de resistência do torturado e evitar alguma marca permanente (loucura, fraturas, cicatrizes). Mesmo assim, em vários casos o limite foi ultrapassado e registram-se desequilíbrios nervosos, loucura, crises cardíacas, surdez”, descreve. “Trata-se de uma luta para destruir – não a resistência física – mas a resistência moral do preso. A pressão física é apenas um veículo para a pressão moral. Ao mesmo tempo que se submete o preso a torturas, acena-se com o fim de tudo, se (o detido) falar.”
Sequência. O ato de torturar não ocorria, segundo os documentos, de forma aleatória. “A tortura começa sempre com um espancamento. A fase seguinte é a do choque elétrico. “O aparelho utilizado é um telefone de campanha, de magneto.” O choque é aplicado simultaneamente ao “pau de arara”. Num outro relato sobre os “Tipos de tortura preferidos”, o documento aponta a “colocação de animais, como cobras, ratos e até um jacaré, na cela dos presos”.
Entre os torturadores, os relatos dos documentos da Cruz Vermelha apontam nomes citados pela Comissão Nacional da Verdade. Um deles é o Tenente Coutinho, “médico que controla cientificamente a tortura”.
Nos informes da Comissão ds Verdade, trata-se de José Lino Coutinho da França Neto. Ele prestou serviço militar na unidade da Marinha na Ilha das Flores (RJ), em 1969 e 1970, e teve participação em casos de tortura. Outro é Miguel Laginestra, apontado como “torturador frio, mas que prefere que os outros façam o serviço”.

Documentos são ‘descoberta arqueológica’

 - Atualizado: 01 Maio 2016 | 07h 03

Os documentos revelados do Comitê Internacional da Cruz Vermelha comprovam que as violações de direitos humanos eram uma “política de estado”, diz o ex-coordenador da Comissão da Verdade Paulo Sérgio Pinheiro, antigo integrante do conselho de assessores internacionais do comitê.
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“Os documentos comprovam em todas as suas linhas os métodos de tortura empregados pela ditadura e parecem uma continuação e um detalhamento do que está no relatório da Comissão Nacional da Verdade”, disse Pinheiro. Para ele, a grande contribuição do comitê é deixar claro que repressão, tortura, desaparecimentos, mortes ou execuções eram uma política de Estado, “numa cadeia de comando que ia dos generais-presidentes até o torturador dando choques elétricos”.
Na avaliação do ex-coordenador da comissão, os documentos “têm a qualidade das descobertas arqueológicas inesperadas que, de repente, trazem para o presente a voz das vítimas e a desumanidade, a brutalidade dos governos militares e dos seus torturadores, muita vez lotados no gabinete do ministro do Exército”.
Debate. Paulo Sérgio Pinheiro acredita ainda que a publicação dessa nova rodada de documentos da Cruz Vermelha poderá retomar o debate do relatório da Comissão da Verdade, publicado em dezembro de 2014.
O brasileiro confirma que o comitê foi “inflexível” e não liberou, em 2013 e 2014, os documentos que ainda estavam sob total sigilo em Genebra.
“De certa maneira, foi até melhor para que possamos reativar no presente o legado da ditadura e a obrigação do governo de impedir a continuidade da tortura, das chacinas, as execuções sumárias da Polícia Militar, a impunidade”, afirma o ex-coordenador da Comissão Nacional da Verdade. 

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