O sucateamento das prefeituras e a falta de habitus republicano


 

               
Nas últimas semanas, lemos e assistimos a um verdadeiro show de horrores: prefeitos recém empossados receberam como cartão de boas vindas prefeituras com dívidas significativas e algumas impagáveis, prédios deteriorados e alguns sem móveis básicos e veículos quebrados. A explicação racional para tal “crime hediondo” é de difícil alcance, mas algumas considerações podem ser feitas.
                Sobre a falta de recurso e dívidas deixados pelo antigo gestor, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) padroniza alguns gastos (25% do orçamento municipal para Educação, 15% para a saúde e até 54% com a folha de pagamento) e obriga o poder executivo a planejar as despesas e investimentos. Além disso, torna inelegível o político que deixar dívidas não previstas no orçamento para o próximo inquilino, isto é, pode levar o ex-inquilino a perder os seus direitos políticos. Dessa forma, a LRF, pensando no bem estar do cidadão e da comunidade, colocou freios na tradicional ânsia de alguns governantes. Entretanto, mesmo assim, alguns gestores deixam os chamados restos a pagar para os futuros gestores. Neste caso, cabe a justiça avaliar a ilicitude do ato.
                Alguns ex-prefeitos não deixam grandes dívidas, porém, o novo inquilino encontra-se sem dinheiro para pagar a gasolina dos automóveis oficiais e alugar veículos para o transporte escolar. Além disso, muitas prefeituras brasileiras não sanaram suas dívidas com a Previdência e estão impossibilitadas de realizar convênios com o Governo Federal. 
Um outro problema é a deterioração de instrumentos e locais públicos (prédios, computadores, automóveis, etc.). Os atuais gestores receberam prédios com rachaduras que afetam a estrutura do imóvel e, em um caso específico, há um buraco de 7 metros no meio de uma sala do paço municipal. Muitos automóveis foram encontrados numa situação de “pt” (perda total) e outros com a falta de partes fundamentais, como roda, direção e banco.
Prática comum em inúmeros municípios brasileiros é “sumir” com documentos gerados durante a gestão do ex-inquilino e apagar todo o conteúdo dos computados – chegam a furtar o disco rígido do computador. Em alguns casos, a memória, experiência e boa vontade dos funcionários concursados ajudam a atenuar essas práticas indecentes, em outros, o novo gestor é obrigado a partir do zero, ou seja, reinventar a roda para conseguir administrar.
Dessa forma, o novo gestor e sua equipe, por mais bem preparados que estejam, demoram de três a seis meses para conhecer e dominar as reais dificuldades e possibilidades da máquina pública municipal. No final de toda essa triste história, o prejudicado é, mais uma vez, o cidadão comum. Aquele que trabalha todos os dias, paga os seus impostos e participa, de dois e dois anos, mais ativamente da vida política.
Mas porque essa prática nefasta ocorre em pleno século XXI? Canalhice? Imoralidade? Velhacaria? Não! Defendemos que o problema não é de ordem individual nem conjuntural, mas estrutural. Quando perpassamos pela história do Brasil, encontramos em diferentes momentos e lugares esse tipo de prática. Por isso, atribuímos esse comportamento reprovável de muitos políticos brasileiros à falta de espírito republicano.
De forma sucinta, por espírito republicano poderíamos compreender a importância do tratamento juridicamente igual em relação a todos os cidadãos (todos são iguais perante a lei), o fim dos privilégios e das distinções resultantes do nascimento, a laicização do Estado, a liberdade de expressão e costumes e, principalmente, a transparência na administração da coisa pública.
Infelizmente, verificamos que para muitos ex-prefeitos e prefeitas, esses valores e ideais não passam de empecilhos para governar. Na prática, a maioria dos políticos brasileiros enxerga na coisa pública a extensão de sua casa, o chamado patrimonialismo. Esse habitus danoso fica visível quando esses inquilinos protestam por ter que prestar contas aos órgãos institucionais ou quando realizam compras públicas sem respeitar os procedimentos legais (licitação). Alegam que sempre administraram os seus negócios – uma quitanda, farmácia, consultório médico, escritório de advocacia ou de engenharia – sem precisar recorrer a essa burocracia.
Uma outra prática que ilumina esse problema é a atitude ou falta de atitude do governante derrotado (não conseguiu se reeleger ou emplacar o seu sucessor): encara o vencedor do pleito como inimigo e não como um mero adversário política. Por isso, nega-se, muitas vezes, a promover uma transição de governo civilizada e, ao contrário, deixa de realizar diversos serviços para prejudicar o novo inquilino.
Portanto, sem embutir na cabeça dos políticos brasileiros e, infelizmente, de muitos cidadãos comuns, práticas e ideais do espírito republicano ao ponto desses se tornarem modus operandi, ou seja, um novo habitus, registraremos, de quatro em quatro anos, esse tipo de problema. Uma pequena sugestão para essas “autoridades” iniciarem uma reflexão sobre essa questão seria o gestor enxergar-se não como: “eu sou prefeito do município X ou Y”; mas como: “eu estou prefeito do município X ou Y”. Em outras palavras, sou um mero inquilino e daqui alguns anos (4 ou 8) entregarei as chaves ao próximo morador.  

Rogério S. Silva. Prof. Dr. de Sociologia na UNISO.  
     

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