A elite e a relativização do crime

POR FERNANDO BRITO · 17/11/2017 relativismo No final da entrevista em que disse ter medo do monstro bolsonariano que ajudou a criar – Kiko Nogueira, no DCM, mostra como isso é verdade – Fernando Henrique Cardoso revela a ver ou não crime, para ele, é uma questão política, ao justificar seu apoio à ruptura da ordem democrática. FHC disse que relutou em apoiar o impeachment de Dilma Rousseff, mas mudou de ideia quando houve a paralisia do governo. De acordo com ele, a única saída possível para esse tipo de situação em um regime presidencialista é o impeachment. O ex-presidente afirmou ainda que o afastamento é uma decisão política, ainda que amparado em base legal – no caso, o desrespeito à Lei de Responsabilidade Fiscal. “Isso é um crime tremendo? Não, muitas pessoas fizeram (o mesmo). E por que não (foram afastadas)? Porque essas pessoas não estavam em uma frágil posição de poder e a consequência não foi a interrupção do processo de tomada de decisões. É uma questão política.” A confissão desabrida de que a condenação da ex-presidente – e a ruptura com a legalidade e a legitimidade democráticas – era justificável guarda (e nem tão “no fundo”) a mesma ideia que têm os grupos violentos também propagam ideias de que o que supõem ser “o bem” que justifica a quebra das regras legais que regulam o convívio civilizado. O noticiário, hoje, sobre a existência de uma “turma da massagem“, que daria surras, na Zona Sul do Rio de Janeiro, em ladrões, pedintes, moradores de rua e outras pessoas marginalizadas, é um exemplo deste relativismo. Espancá-los se justificaria também pela “paralisia do Governo” em tirá-los da rua e assegurar a tranquilidade da população. O degrau de quebra da legalidade que Fernando Henrique admite ter sido necessário subir faz parte da mesma escada que, no ápice, leva a isso e, no final, a fatos como o assassinato de mulher que morava nas calçadas de Copacabana. Justificam-se pelo “bem público” que acreditam encarnar e exercitam as próprias razões e pelo desprezo ao direito dos outros. O direito do outro é apenas “coisa de preto”, ou de pobre, ou de nordestino, ou de veado, ou de comunista. O negrinho amarrado ao poste da Rachel Sheherazade, o “senta o dedo” e o “baixa o porrete” dos programas de rádio e TV, a liberação da posse e porte de arma para “o cidadão poder se defender” ou do “blabloquismo” com o qual muita gente foi tolerante têm o mesmo estofo ideológico daqueles “pelos meus filhos, pelos meus netos, pelo Brasil, eu voto sim!” . Bang! Bato e mato em nome da sociedade. Em nome da sociedade como ela é, com suas desigualdades, a preservação do status quo, para o qual mobilizam as tropas da classe média, sempre dispostas a se julgarem “superiores” e repetirem o discurso que a elite repete e ensina. Fernando Henrique reclama que Bolsonaro queria fuzilá-lo, embora ele próprio admita que o fuzilamento – formalmente legal – de um mandato presidencial se justifica, pelo bem do país. Os processos de ódio, num indivíduo ou numa coletividade, são autofágicos, acabam por devorar aqueles que os ajudaram a produzir e, adiante, aos seus encarnadores. Mas, até lá, destroem, matam, infelicitam.

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