Da Carta Maior, trecho do editorial de Saul Leblon:
O grau de sacrifício que o golpe decidiu impor à população brasileira é muito superior ao poder de ordenamento que as elites detêm para implementa-lo sem recorrer a um regime de força.
Só uma ampla frente de interesses e forças poderá impedir que a lógica em curso se acerque do epílogo nefasto.
É sombrio o futuro da democracia no Brasil: a vitória ou a derrota da resistência popular nesse embate condicionará o destino da sociedade que seremos no século XXI.
Arremeda-se aqui um Tratado de Versalhes revestido de medidas extremas de sacrifício e empobrecimento, qualificadas pela relatoria de Direitos Humanos da ONU ‘como sem precedente no mundo em sua duração e intensidade’.
’Essa emenda’, diz Philip Alston, relator da ONU, ‘[ademais de] atar as mãos de todos os próximos governos por outras duas décadas, bloqueará gastos em níveis inadequados e rapidamente decrescentes na saúde, educação e segurança social, colocando toda uma geração futura em risco de receber uma proteção social muito abaixo dos níveis atuais…. Se for adotada, colocará o Brasil em uma categoria única em matéria de retrocesso social’.
Ao contrário do acordo imposto à Alemanha em 1919 pelo Tratado de Versalhes, igualmente incompatível com a capacidade de pagamento e sobrevivência da sociedade, como anteviu John Mainard Keynes –que abandonou a delegação inglesa nas negociações e expôs suas divergências no clássico ‘As consequências econômicas da paz’— o alvo agora não é um inimigo à mercê da vingança dos vitoriosos, após uma conflagração mundial que custou dez milhões de vidas.
O alvo da elite brasileira hoje é o próprio povo, tratado como inimigo dentro do seu próprio país.
Descarrega-se sobre a geração de hoje, a de ontem e a de amanhã, o descomunal custo de uma transição de desenvolvimento só equacionável com a repactuação justa do ônus da travessia e a democratização das oportunidades previstas na chegada.
As elites e os donos da riqueza preferiram o golpe.
A diretriz incrustrada na PEC 55– como também na reforma da Previdência em curso, e na ‘flexibilização das leis trabalhistas’ sinalizada, desenha um horizonte de afunilamento extremo do acesso a direitos e à renda, num quadro de desigualdade secularmente asfixiante.
A ganância replica aqui, em certa medida, a postura do insaciável George Clemenceau, primeiro-ministro francês nas negociações de paz de Versalhes, entre as potencias vitoriosas (França, Inglaterra e EUA) e a Alemanha derrotada.
Sugestivamente conhecido como ‘Tigre’, o representante de Paris traduzia em exigências de pagamentos e ressarcimentos a ferocidade felina atada à jugular da presa.
A ‘paz cartaginesa’ imposta ao povo derrotado na Primeira Guerra Mundial vale como metáfora do que se pretende agora com a nova ordem social inscrita na PEC -55.
Às famílias assalariadas, aos pobres e deserdados reserva-se um jejum de futuro equivalente ao dispensado por Roma aos derrotados de Cartago, onde até o solo da colônia foi salpicado de sal, para que o povo fenício não pudesse mais semear nem colher.
A PEC 55 salga o futuro da pobreza hoje e amanhã.
E o faz em variadas frentes; por exemplo, ao estreitar ainda mais o corredor já rígido da educação, como atalho mitigador da desigualdade brasileira.
O espírito de convergência inscrito no pacto social da Carta Cidadã de 1988 está sendo rompido em seus fundamentos, sem consultar a sociedade.
Desobriga-se o Estado, pelos próximos vinte anos, de assegurar 18% da receita líquida da União à escola pública nacional.
Nesse período o orçamento terá apenas a reposição inflacionária.
Significa que diante da expansão demográfica, em dez anos, ou seja, em 2026, os 18% atuais representarão 14,7%; que despencarão para 9,3% em 2036 (50% do valor insuficiente disponível hoje).
Estamos falando de um garrote progressivo.
O pescoço é um sistema em que o salário base do professorado equivale a menos da metade da média da OCDE — sendo igualmente mais baixo que o de países da América Latina como Chile, México e Colômbia.
O Brasil investe US$ 3,8 mil /ano por aluno na educação básica.
Os países da OCDE investem, em média, cerca de US$ 8,4 mil/ano per capita nos anos iniciais.
A defasagem é maior ainda nos estágios subsequentes.
Qual a surpresa com os resultados ainda desfavoráveis nos rankings internacionais de aprendizagem?
É esse sistema vulnerável, desafiado a dobrar as matrículas no ensino superior até 2024, a expandir o ensino técnico para elevar a produtividade da economia, a universalizar o acesso à educação infantil entre 4 e 5 anos e a elevar a qualidade do atendimento escolar na faixa crítica entre 15 e 17 anos que está sendo garroteado agora para não adicionar investimentos líquidos à máquina pública por vinte anos.
Na saúde, o Tratado de Versalhes brasileiro prevê um corte de R$ 440 bilhões até 2036.
Hoje o SUS já é uma hemorragia fora do controle, um metabolismo subfinanciado, respirando por aparelhos –e esse é um consenso suprapartidário.
O que se passa, portanto, é algo distinto da recorrente barragem conservadora a novos avanços sociais.
O espírito de Clemenceau está no ar.
A determinação é a de esfolar até o osso, pelo tempo mais longo possível, as famílias assalariadas, a pobreza e a velhice desamparada.
O tigre da ganância capitalista fechou as mandíbulas na jugular do Estado, da nação e de sua gente.
Para não pagar imposto.
Um estudo do PNUD, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, corrobora o bordão conservador de que o Brasil cobra quase tanto imposto quantos os países ricos.
A obsequiosa mídia oficialista omite, porém, a distinta composição dessa carga.
Ao invés de taxar a riqueza, o fisco brasileiro suga a classe média e os pobres.
Os “super-ricos” do Brasil, ou 0,05% da população, diz o PNUD, pagam proporcionalmente menos impostos do que pessoas de renda intermediária.
Ganhos anuais superiores a R$ 4 milhões desfrutam de isenções sobre lucros e dividendos –sua principal fonte, em muitos casos. Isso garante que a republica rentista e a pátria dos acionistas pague, de fato, uma alíquota média de 7% aos fundos públicos.
O cidadão comum paga em média 12%.
O requisito para cercar essa assimetria da paz dos cemitérios imposta à Alemanha em 1919 é a faxina social promovida pelo golpe de 31 de agosto.
No momento estratégico em que o esgotamento de um ciclo de desenvolvimento impunha a discussão do passo seguinte a ser escrutinado pela sociedade, as elites se anteciparam.
E enfiaram goela abaixo da sociedade o seu projeto de paz social.
Consiste em tomar de volta, subtrair e predar tudo o que for possível e que se acumulou em décadas, por sucessivas gerações, no campo aberto das ruas, das greves, das urnas e do sacrifício –não raro da própria vida– para se implantar a universalização os direitos sociais básicos no Brasil.
Mira-se desde a CLT, de Getúlio –e a partir daí, tudo o que veio depois e foi consolidado na Carta Cidadã de 1988, rebaixada à categoria de estorvo do capital.
Tudo o que não é mercado é populismo e corrupção, ensina o jogral fúnebre da mídia embarcada na desconstrução do espírito constituinte de 1987/88.
Uma rendição celerada e incondicional é operada nesse ambiente por um parlamento que se ergue vergonhosamente contra o povo e, como um hímen complacente, sanciona todas as violações contra o patrimônio e a soberania da nação.
A ‘des-emancipação’ social em massa atingirá a presente geração, a anterior, idosa, e a futura, hoje na soleira do mercado e da cidadania.
O que está em jogo é o destino de um dos países mais promissores dentre os que lutam pelo desenvolvimento no século XXI.
Ignora-se a vida e a morte, assim como as convulsões inerentes ao desatino em marcha.
Cega pela ganância, a elite enxerga na sociedade apenas o entreposto onde salgar carne humana em troca da manutenção de uma descabida e perturbadora acumulação de riquezas e privilégios.
Na encruzilhada atual, o formol histórico requer o absoluto desamparo da parcela majoritária da sociedade, descarnada de direitos e instrumentos para influenciar as relações de poder e produção no capitalismo brasileiro.
O conjunto requer uma ruptura histórica para se consumar.
Não qualquer uma.
Essa que será decidida nas ruas em 2017.
De uma ferocidade equivalente à urdida no salão de espelhos do Palácio de Versalhes, onde o ‘Tigre’ exigiu o sangue e da alma de sucessivas gerações alemãs.
Uma escalada dessa natureza e intensidade implica em algum ponto da cadeia em uma ruptura com as bases do Estado liberal.
Seja para viabilizar a gula predadora, seja para derrota-la.
Na Alemanha isso ocorreu em 30 de janeiro de 1933, quando o partido nazista, já majoritário no parlamento, impôs seu líder, Adolf Hitler, como chanceler do enfraquecido governo Hindenburg, que cortava investimentos públicos em meio a uma crise devastadora.
Hitler acionou os instrumentos estatais de centralização, produção, financiamento e planejamento necessários à reversão de um colapso econômicos devastador.
Hjalmrar Schacht, um banqueiro nacionalista (havia disso no início do século XX), nomeado presidente do Reichsbank, o BC de Hitler, observou que “a política passiva” do gabinete Brünning, de imobilização pró-cíclica do Estado, endossando o mergulho da economia, não poderia jamais resolver o problema de uma sociedade em meio a uma desordem mundial.
De fato não resolveu.
Refém de uma prisão ideológica semelhante àquela, o ‘o golpe da restauração neoliberal’ ameaça o Brasil com um flagelo equivalente ao que levou à derrocada da República de Weimar.
O sagaz Schacht mobilizaria os antídotos estatais à liquefação da economia e da sociedade alemã, mas o fez no escopo de uma odiosa restauração da autoestima nacional, embalado no impulso imperial racista da máquina genocida nazista.
O resto é bastante conhecido.
Leia mais na Carta Maior.
Nenhum comentário:
Postar um comentário