Empresa infiltrou espião entre ativistas que combatem o amianto; mistério de quem pagou araponga pode ser desfeito em Londres

30 de janeiro de 2017 às 22h42

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À esquerda, Laurie Kazan-Allen (topo) e Linda Reinstein. Ao centro, Fernanda Giannasi, símbolo da luta antiamianto no Brasil, e Rob Moore, o espião contratado pela K2. De cima para baixo, Jules Kroll (presidente do Conselho), Jeremy Kroll (CEO) e Matteo Bigazzi, o diretor-executivo da K2, em Londres. Jules é o fundador da famosa Kroll Inc. Bigazzi também trabalhou na Kroll antes de ir para a K2
por Conceição Lemes
Pelo menos há cinco décadas já se sabe que todos os tipos de amianto, ou asbesto, são cancerígenos, inclusive o crisotila ainda produzido, comercializado e utilizado no Brasil.
O contato com o mineral está associado principalmente a dois tumores malignos:  câncer de pulmão e mesotelioma, geralmente fatal e que atinge pleura (camada que reveste o pulmão), peritônio (camada que reveste o intestino) e pericárdio (camada que reveste o coração).
Mais de 60 países, inclusive toda a Europa, já o proibiram por completo. Recentemente o Canadá anunciou o banimento em 2 anos.
E a tendência desse número é crescer, devido às campanhas da rede mundial de ativistas pela proibição total da fibra assassina. Dela fazem parte estas três mulheres:
Laurie Kazan-Allen – Há 25 anos participa dessa luta. Em 2000, ajudou a fundar o International Ban Asbestos Secretariat  (IBAS, Secretariado Internacional do Banimento do Amianto), com sede no Reino Unido, onde é sua coordenadora.
Linda Reinstein – Tornou-se ativista a partir de 2003, quando o seu marido foi diagnosticado com mesotelioma de pleura e morreu. Preside a Asbestos Disease Awareness Organization (ADAO, organização de conscientização sobre as doenças do amianto, em tradução literal). Criada em 2004, a ADAO está baseada em Los Angeles, EUA. Seu objetivo é conscientizar sobre os riscos às pessoas afetadas pelo mineral cancerígeno.
Fernanda Giannasi – Engenheira do trabalho, auditora fiscal aposentada do Ministério do Trabalho, é cofundadora da Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (Abrea), criada em 1995. É o símbolo da luta antiamianto no Brasil.
Pois nesta terça-feira, 31 de janeiro de 2017, a atenção de Laurie, Linda e Fernanda estará voltada para o mesmo local: a Corte Real de Justiça, em Londres.
Motivo: mais uma audiência do caso da empresa que infiltrou um espião no movimento global pelo banimento do amianto.
Durante quatro anos — de 1º de junho de 2012 a setembro de 2016 – Rob Moore, trabalhando para K2 Intelligence, fez-se passar por um jornalista-documentarista simpático à causa do amianto, para reunir informações confidenciais sobre as principais lideranças mundiais, suas estratégias e planos futuros.
A K2, por sua vez, repassava as informações ao seu cliente, cujo nome se recusou a divulgar na última audiência, em dezembro de 2016.
K2 e Rob Moore são réus. Laurie Kazan-Allen, uma dos três demandantes do processo em curso na Inglaterra.
É razoável supor, informou o tribunal de Londres, que o cliente seja uma ou mais empresas da indústria de amianto de país produtor ou exportador do mineral ou que haja até mesmo envolvimento de membros de governo desses países.
Rússia, China, Brasil e Cazaquistão são os maiores produtores e exportadores no mundo.
“Esperamos que a corte britânica obrigue a K2 a revelar o nome do cliente — ou clientes — , que lhe pagou uma fortuna para fazer esse serviço sujo”,  diz, indignada, Fernanda Giannasi, que nos últimos 20 anos foi alvo de vários ataques da máfia do amianto no Brasil.
“Comparando com o modus operandi da K2, eu diria que os métodos usados na minha ‘estreia’ eram primitivos, jurássicos e previsíveis”, reconhece. “Quão sofisticados são os métodos atuais!”
“Talvez até por eu já ter sido espionada no Brasil, minha’ luz’ acendeu no momento em que conheci o Rob, eu não lhe passei nenhuma informação útil”, prossegue.
“Estou furiosa de ter gasto tempo com esse criminoso”, revolta-se. “É ultrajante! Temos o direito de saber quem está por trás do espião do amianto, assim como as informações que ele levantou e repassou.  Se for o caso, até tomar medidas judiciais contra esses impostores.”
EMPRESA QUE CONTRATOU ESPIÃO É DE FUNDADOR DA KROLL
Tem uma frase que os americanos usam bastante:  “o lobby  do amianto tem o melhor que o dinheiro pode comprar”.
A prática confirma. No mundo inteiro, sempre foi assim.
Mas, desta vez a sua ação criminosa se superou.
Em 8 de dezembro de 2016, o The Guardian publicou uma denúncia gravíssima sobre o esquema de espionagem da K2, embora até o momento não se conheçam todos os envolvidos nem a extensão dos danos causados.
Parece script de filme de James Bond, o agente secreto fictício 007 do serviço de espionagem britânico, criado pelo escritor Ian Fleming em 1953.
Infelizmente, não é.
Trata-se da vida real, envolve um espião que não é nenhum mocinho “do bem” e uma importante empresa de inteligência corporativa, a K2 Intelligence Ltd.
Sediada em Nova York, com escritórios em Los Angeles, Londres, Madrid, Tel Aviv e Genebra, a firma foi fundada em 2009.
Pertence a Jeremy Kroll (CEO) e a seu pai Jules Kroll (presidente do Conselho), considerado o fundador da indústria moderna de investigações corporativas.
Jules é simplesmente o criador da famosa Kroll Inc, que ele vendeu em 2004 por US$ 1,9 bilhão.
A K2 contratou Rob Moore para executar o “Projeto Amianto”.
O objetivo era ter acesso a informações que os integrantes da rede mundial antiamianto nunca compartilhariam voluntariamente com a indústria ou seus agentes, entre os quais o próprio Moore, se soubessem quem ele realmente era.
Por exemplo, dados sobre campanhas futuras pelo banimento, divisões internas entre os vários grupos sobre a conveniência e probabilidade da proibição em um determinado país.
Daí, Rob Moore se fazer passar por um jornalista-documentarista.
Segundo o tribunal de Londres, documentos e relatos demonstram que do começo ao final do “Projeto Amianto”, K2 e Matteo Bigazzi estiveram envolvidos nas irregularidades cometidas por Rob Moore.
Matteo Bigazzi é o diretor-executivo da K2 em Londres. O site da empresa apresenta-o como “perito em fraudes transfronteiriças e investigações de corrupção”.
Anteriormente,  ele havia sido diretor associado da Kroll Associates em Londres e Milão.
Em um dos relatórios que constam do processo, Moore identifica-o como “diretor de projeto” e o seu único ponto de contato em relação a informações confidenciais.
Bigazzi e Moore juntos, segundo o Tribunal de Londres, elaboraram a estratégia de abordagem de Laurie Kazan Allen, do IBAS, em Londres.
Ela foi a porta de entrada para a espionagem de todo o movimento e de suas principais lideranças.
CONQUISTAR A CONFIANÇA E ACESSO A INFORMAÇÕES CONFIDENCIAIS
Em junho de 2012, Moore aproximou-se de Laurie com o pretexto de ser um jornalista que planejava fazer um documentário sobre os perigos do amianto.
Em um dos documentos do processo, Moore [identificado como DNT até 19 de dezembro de 2016, quando a Justiça britânica suspendeu o sigilo sobre seu nome] conta que realizou pesquisas para dar credibilidade jornalística ao que propunha. Os dados em parênteses se referem às páginas e referências do processo:
“Eu fui capaz de identificar várias notícias, ângulos, temas que seriam de interesse genuíno para um documentário. E estou confiante de que posso entrar neste mundo com relativa facilidade e com um alto nível de legitimidade e credibilidade “(RM5 p83).
Ele afirma:
” Eu gostaria de me envolver com o IBAS e LKA [Laurie Kazan Allen, o Segundo Requerente] da maneira a mais genuína e sincera possível para que eu possa estabelecer tanto uma conexão intelectual como emocional com LKA “(RM5 p83).
Ele também explica que à medida que fosse construindo uma relação de confiança com Laurie, ele poderia começar a fazer perguntas mais detalhadas sobre o IBAS:
“Quanto mais eu for capaz de explorar suas reivindicações, mais poderei fazer as perguntas-chave. Este é um ponto importante”.
Em depoimento ao tribunal, Richard Meeran, advogado de Laurie, disse que, dentro essa estratégia, Rob Moore pensou criar um site chamado “Britishspring.org”:
(…) permitirá que eu pergunte a LKA questões mais pessoais sobre como ela organizou o IBAS, como administra, como ela conseguiu expandí-lo para produzir campanhas de relacionamento em outras partes do mundo, e como tudo isso é financiado.
Richard prossegue:
DNT não criou um site chamado Britishspring.org, mas ainda neste ano criou um site para uma instituição de caridade que seria chamado Stop Asbestos (Pare o Amianto), que mais uma vez era simplesmente uma camuflagem, de modo que ele tinha uma desculpa para continuar a infiltração na Rede do Requerente. Este aspecto da enganação de DNT é tratado no depoimento do Requerente nos parágrafos 2-8 da declaração de testemunha do Primeiro Requerente, parágrafos 38 a 41 da declaração do testemunho do Segundo Requerente, parágrafos 8-9 da Declaração de testemunha do Terceiro Requerente e nos parágrafos 43 e 49 abaixo.
O site Stops Asbestos fica aquiRob Moore  envolveu  nele figuras importantes do movimento internacional para ajudar a colaborar — inclusive financeiramente — com seus projetos.
Abaixo um recorte da capa. Depois, a lista dos colaboradores. Estes dois prints foram tirados nesta segunda-feira, 30 de janeiro, às 20h52, hora de Brasília.
Stop print capa
Stop print-001
Assim, fingindo partilhar dos mesmos objetivos em relação à prevenção das doenças relacionadas ao amianto e à indenização das vítimas ou familiares, Rob ganhou a confiança de Laurie.
Através dela,  sempre se passando por jornalista-documentarista e invocando ser irmão de Charlotte Moore, diretora de conteúdo da respeitável BBC inglesa, ele teve acesso à rede mundial de ativistas, fez entrevistas com os principais protagonistas, participou de conferências e reuniões restritas tanto na Grã Bretanha quanto em outros países.
“Fui apresentada a Rob Moore por Laurie Kazan-Allen, que sugeriu que ele participasse da nossa conferência  anual para coletar imagens e entrevistas para o documentário sobre amianto”, informa Linda Reinstein, CEO da ADAO.
Moore participou de duas conferências internacionais da ADAO; 2013 e 2015, ambas em Arlington, Washington.
Ele fotografou o que aparecia em cada slide das apresentações e fez inúmeras entrevistas com especialistas médicos, advogados e vítimas de amianto.
“Hoje, sabendo o criminoso que é, digo que ele se infiltrou nas conferências da ADAO para coletar informações sobre o movimento antiamianto americano”, supõe Linda.
Moore usou também o nome de Laurie, para se apresentar por e-mail a Fernanda Giannasi.
Na mensagem, disse ser amigo de Laurie, que sabia que Fernanda iria a Washington participar da conferência da ADAO e que queria entrevistá-la para o documentário sobre os perigos do amianto.
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“Ele até me convidou para jantar e eu, por pura intuição, pedi a uma advogada holandesa para ir junto como testemunha”, relata.
“Ele nos levou a um pub no centro de Washington; ficava distante do hotel em que todos nós estávamos reunidos. Hoje entendo que era para estar longe das vistas dos demais”,  pontua.
“A rigor, eu não tinha por que desconfiar, já que tinha o salvo conduto de ser amigo da Laurie”, continua.
“Mas, por uma razão mais intuitiva do qualquer outra coisa, assim que ele se aproximou, eu suspeitei”, relembra.
“Além de não lhe dar qualquer  informação útil, declinei de participar de seus projetos, que me pareceram mirabolantes e inatingíveis para quem dizia não ter nenhum financiamento“, explica.
RECEBEU R$ 1,82 MILHÃO PARA LUDIBRIAR ATIVISTAS
Durante os quatro anos de espionagem, Rob Moore reuniu 35.000 documentos, incluindo e-mails, apresentações em power point, imagens, fotos,  textos, arquivos de áudio, cerca de 500 horas de gravações.
Foi realmente trabalho sofisticado de espionagem pelo qual ele recebeu da K2 Inteligence um total de £460,000 (libras esterlinas), sendo £ 336.015, provenientes de salários, e £ 336.015, de reembolso de despesas.
Isso significa em reais, considerando o valor de hoje da libra, um total de R$ 1,82 milhão.
De acordo com o tribunal de Londres, o objetivo final era difamar e desacreditar a rede mundial de ativistas perante governos e organizações que ela pretendia atingir.
Para isso, era preciso descobrir informações que pudessem ser utilizadas para sugerir que a rede era financiada por quem tinha interesse financeiro na questão. E que esse era o verdadeiro motivo do movimento pela proibição do amianto e não as razões de saúde pública.
Em setembro de 2016, Laurie soube das verdadeiras intenções de Rob Moore depois de receber uma dica de outra ONG com a qual ele se envolveu, segundo o tribunal.
Foi um choque para ela e para os outros ativistas.
De um lado, imensa decepção com alguém que julgavam amigo.
De outro, angústia e preocupação com a extensão dos danos causados pelo uso indevido e disseminação de informações altamente confidenciais sobre estratégias de campanha e litígios da rede, inclusive entre membros do grupo, coletadas durante quatro anos.
“Me sinto traída”, queixa-se Linda Reinstein.
“Me senti usada. O meu prejuízo é o menor possível, pois não passei nenhuma informação e muito menos recursos para ajudá-lo a financiar seu  falso documentário, até porque a a ABREA sobrevive de recursos ínfimos e doações mensais de seus membros ”, observa Fernanda Giannasi. “Porém, ele mentiu, me enganou; para mim, uma atitude inaceitável.”
Do relatório de Rob Moore constam também informações altamente pessoais que ele obteve e enviou para Bigazzi sobre Laurie, como seus hábitos de gastos, como se cuida, seu estado de saúde.
O tribunal informa que, como bem sabe Rob Moore, a saúde de Laurie, de 69 anos, é frágil.
Em 2013, ela sofreu um grave infarto, ficou 12 dias na UTI e quase morreu.
Apesar disso, segundo o tribunal, Rob continuou a usar Laurie, explorando implacavelmente sua boa vontade em relação a ele, o que aconteceu ao longo de 4 anos.
Ele chegou ao cúmulo de apresentar à K2 o tempo gasto para escrever uma carta de solidariedade ao marido de Laurie, quando ela estava na UTI, reivindicando o seu pagamento.
Em depoimento ao tribunal, Richard Meeran, advogado de Laurie, disse que ela ficou devastada ao descobrir que havia sido traída por DNT, agora desmascarado:
“Ela passou por sentimentos de negação, confusão, ultraje emocional, agitação emocional, angústia, choque, angústia e ansiedade. Ela questiona a validade do trabalho que  fez nos últimos quatro anos e o valor do trabalho de sua vida.
 “Ela disse que se sente como a vítima de um ataque agressivo e íntimo. Ela tem tido problemas para dormir e sofre uma sensação de imensa vergonha por ter sido aprisionada por DNT e pela K2”
Por enquanto, três pessoas, todas de Londres, estão processando Rob Moore e a K2. Uma delas é Laurie Kazan, como já dissemos no início.
Para o tribunal, as condutas de Rob Moore, K2 e Bigazzi causaram extenso prejuízo aos demandantes. Houve violação de confidencialidade, além de humilhação.
O tribunal diz também que a conduta deles foi incrivelmente prejudicial aos demandantes no nível profissional.
Os demandantes reivindicam que todos documentos obtidos por Rob Moore sejam devolvidos, inclusive os que foram repassados a K2 e a Bigazzi.
Eles querem também saber o que foi repassado para o cliente da K2 e ele seja proibido de usar quaisquer das informações obtidas.
Diante de tudo isso, a pergunta óbvia: o que levou Fernanda Giannasi a não cair na armadilha de Rob & Cia?
Ela mesma expõe:
* O que me deixou meio intrigada  foram algumas perguntas e estilo de ele perguntar. Me lembrou muito o interrogatório ao qual fui submetida em 2000 por dois arapongas da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), no governo FHC.
* Ele fazia uma pergunta sobre qualquer assunto só para iniciar, aí colocava outra no meio, que é a que lhe interessava. Depois, ficava voltando sempre à questão-chave.
* Era um vai e volta em perguntas sobre financiamento dos movimentos e de seus membros, como se buscasse uma contradição, uma confissão num momento de descuido, queria saber intrigas e desavenças entre membros do grupo de ativistas.
* Enfim, era nitidamente um interrogatório.
* Além disso, a forma como ele me olhava, parecendo querer ler minha alma e meus pensamentos, me deu calafrios. Aquilo me deixou desconcertada. Literalmente, um déjà-vu.
Rob  bbc-001Nesse domingo, 29 de janeiro, a BBC publicou  no Sunday Times uma nota onde afirma que “Charlotte Moore não teve nenhum envolvimento neste caso e que este assunto não tem nada a ver com ela.”
Afirma também que “a BBC não é parte, não está envolvida e não deu apoio, nem prestou qualquer depoimento no assunto em questão”.
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