Internação compulsória defendida por Doria para Cracolândia é forma de tortura, diz OMS

EXPEDIENTE NAZISTA

Organização Mundial da Saúde alerta que medida não resolve o problema e recomenda abordagem multidisciplinar para redução de danos e liberdade para o dependente escolher seu tratamento
por Cida de Oliveira, da RBA publicado 27/05/2017 10h07, última modificação 27/05/2017 10h56
MÁRCIA MINILLO
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Símbolo da resistência dos usuários ao desmonte do programa baseado na redução de danos
São Paulo – Contrariando expectativas do Ministério Público, da Defensoria Pública, dos conselhos regionais de Medicina e de Psicologia, entre outros, além de movimentos sociais e organizações que atuam na região da Luz, centro de São Paulo, o juiz Emílio Migliano Neto, da 7ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, acatou na noite de ontem (26) pedido da Prefeitura de São Paulo que autoriza médicos do serviço municipal de saúde a avaliar e internar a força usuários de crack pelo período de 30 dias. As entidades ainda podem entrar com recurso contra a decisão.
Esta é a primeira vitória do prefeito João Doria (PSDB) desde que deu início a uma série de intervenções truculentas na região conhecida como cracolândia, na madrugada de domingo (21), quando cerca de 600 policiais militares e da Guarda Civil Metropolitana foram às ruas do bairro e atacaram as pessoas, sob pretexto de prender traficantes. Na operação, foram usadas dezenas de bombas de gás lacrimogêneo e disparados tiros de balas de borracha. Muitos soldados portavam até armas de fogo, segundo relatos. A violência continuou nos dias seguintes, com casas arrombadas e reviradas, pertences destruídos, expulsões de moradores, interdições e demolições, inclusive com pessoas dentro dos imóveis.
Com os impactos das operações, Doria acabou unindo, contra si e o governador Geraldo Alckmin (PSDB), promotores e defensores públicos, especialistas em saúde, assistência social, educação, parlamentares, movimentos sociais, parte da imprensa e até mesmo sua secretária de Direitos Humanos, a psicóloga e vereadora Patrícia Bezerra (PSDB) – no mesmo dia em que a Procuradoria Municipal ingressou com o pedido de autorização para a internação compulsória de usuários de drogas que frequentam a Cracolândia, ela pediu demissão justamente por discordar da política conduzida pelos tucanos para o setor.
Política violenta, que se completa agora com a internação compulsória legitimada pelo Estado.
"Precisamos de ajuda, cuidado... não ser humilhado. Somos viciados, doentes. Precisamos de ajuda, não de internação forçada, que não vai ajudar. Só vai piorar a situação... Resistimos, de braços abertos"  – Marcos Japonês, usuário de crack

Tortura

O processo corre em segredo de Justiça. Por isso, não se sabe ainda em que fontes o juiz Emílio Migliano Neto foi buscar argumentação para sua decisão, que contraria frontalmente as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS).
De acordo com o organismo das Nações Unidas, internações compulsórias de usuários de drogas em supostos centros de reabilitação, de tratamento de drogas ou de "reeducação através do trabalho" podem se tornar locais para a prática da tortura e de maus-tratos, além de serem em muitos casos instituições controladas por forças militares ou paramilitares, forças policiais ou de segurança, ou ainda por empresas privadas.
"Cuidados médicos que causam grande sofrimento sem nenhuma razão justificável podem ser considerados um tratamento cruel, desumano ou degradante, e se há envolvimento do Estado e intenção específica, é tortura", alertou o presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e secretário-executivo da Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD), Cristiano Maronna.
"Internar a pessoa a força é uma forma de torturar. Então é preciso denunciar essa política higienista. Internação compulsória, apenas em último caso, apenas quando já foram esgotados todos os recursos terapêuticos, conforme a lei", disse Maronna, em participação na audiência pública realizada na noite desta quinta-feira na Câmara dos Vereadores de São Paulo.
"Em todo o mundo, a classe média vive em redução de danos. Muitas pessoas bebem sua cerveja, seu uisquinho, fumam seu baseado, cheiram cocaína e vão trabalhar no dia seguinte. Quem tem família, 'cidadania', pode. Mas eles, que são pobres, negros, afastados da sociedade, não podem" – Fernando Sato, Casa Rodante

Não funciona

Professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o psiquiatra Dartiu Xavier destaca que há muito desconhecimento e preconceito em relação à dependência química. Segundo ele, nem todos que usam droga se tornarão dependentes. E que a melhor maneira de abordar um dependente é a interdisciplinar, com assistência social, saúde, educação e capacitação profissional.
"Intervenções restritivas, punitivas, com internação compulsória, têm muito pouco resultado. Enquanto estiver internada, a pessoa não vai usar droga. Mas no dia em que ela sair, ela vai recair imediatamente. Mais de 90% têm recaída. E um modelo caríssimo e de baixíssimo resultado", disse. "Já em programas de abordagem multidisciplinar e redução de danos, como o De Braços Abertos, há redução do uso de drogas em 84% dos casos", disse.
Diversos países, segundo ele, já adotaram esses modelos multidisciplinares de redução de danos, com resultados igualmente satisfatórios. 
Para Xavier, outro equívoco é atribuir todo o problema social à droga. "Aquelas pessoas são privadas de alimentação, moradia, trabalho, saúde e educação. Ou seja, vivem uma situação muito séria de exclusão social e a única forma de elas terem alguma... é a droga, seja o álcool ou outras drogas baratas, porque não têm recursos", disse. 

 Ilegal

O presidente do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-SP), Aristeu Bartelli, classifica qualquer internação compulsória como um "expediente nazista" que só vai ser comparado ao período de exceção nazista. "O CRP vive a avisar aos psicólogos: cuidado e atenção ao se envolver com atendimentos em massa. Atendimentos em massa que não respeitem a lei, a dignidade humana, ferem o código de ética profissional, serão cobrados pelo Conselho", disse.
O Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) também tem orientado aos médicos a não realizarem perícias e nem indicarem internações compulsórias.

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