Porque chamar de supremos e superiores tribunais que assistem o Brasil ir ladeira abaixo?


por Paulo Endo, especial para os Jornalistas Livres

08/06/2017- Brasília- DF, Brasil- O presidente do TSE, ministro Gilmar Mendes, durante julgamento da chapa Dilma-Temer Foto: José Cruz/Agência Brasil
A lei permite muitas coisas, inclusive inexoráveis injustiças. Não é preciso gastar muita tinta e papel para, numa olhadela, perceber que os operadores do direito no Brasil são frequentemente flagrados, à luz do dia, cometendo brutais injustiças, envolvidos em corrupções escandalosas, apaniguando e apaniguados por personalidades políticas suspeitas.
Podemos relembrar fatos anteriores à miríade de atitudes, ações e julgamentos que sobrevieram ao impeachment da presidente eleita Dilma Roussef, inteiramente capitaneado por um criminoso profissional, hoje na cadeia, que mandou e desmandou como quis no projeto de impedimento de uma presidente nas barbas da justiça brasileira. Onde estava o supremo supremo tribunal do país para evitar que o mais decisivo e, nesse caso, mais controverso processo de nossa história recente tivesse o desfecho que teve, colocando o governo do país nas mãos de personagens suspeitos de gigantescos esquemas de corrupção e lavagem, que tornam risíveis as acusações sobre pedaladas fiscais contra o governo Dilma Roussef? Vimos o STF assistir tudo de camarote, atrasava o julgamento de Eduardo Cunha, e permitia que um criminoso julgasse uma presidenta em relação à qual não foi comprovado nenhum crime, nenhum enriquecimento ilícito, nenhum desmando.
Prova flagrante e nefasta disso é o que viria a acontecer, dois dias depois do processo de impeachment no Senado Federal. Os ilustres senadores transformaram o crime, do qual fora acusada a ex-presidente e que oportunizou o ingresso de Michel Temer e sua turma no comando do país, em lei. Ontem crime gravíssimo que depõe a presidente eleita, hoje lei para que Michel Temer possa governar semcontratempos utilizando-se dos mesmos mecanismos pelos quais Dilma foi condenada.
Quase não há gramática para descrever o que vivemos no Brasil de hoje.
Mas vamos voltar algumas décadas em outros momentos decisivos do país: o golpe de 1964. Antes que o governo militar , apoiado por civis, baixasse o AI-2, em outubro de 1965, e ampliasse a composição do STF de 11 para 16 ministros, a fim de garantir maioria pró-governo em todas as votações, o STF deu guarida ao golpe. Vejamos trecho de texto publicado no blog do Mario Magalhães:
Em 1964, Alvaro Moutinho Ribeiro da Costa presidia o STF. Nessa condição, o ministro participou e deu cobertura ao golpe de Estado que depôs o presidente constitucional João Goulart. Entre as 3 e as 4 horas da madrugada de 2 de abril daquele ano, Ribeiro da Costa presenciou e deu a bênção ”constitucional” à posse do deputado Ranieri Mazzilli na Presidência da República. A Presidência havia sido declarada vaga, e os golpistas anunciavam que Goulart deixara o país. Mentira: ele voava ou desembarcara havia pouco em Porto Alegre. A posse de fancaria, no batismo da ditadura, ocorreu no gabinete presencial do Palácio do Planalto.’
Episódico? Não.
Em julgamento recente, mas decisivo, ocorrido em 2010, o Supremo Tribunal Federal julgaria a arguição por descumprimento de preceito fundamental 153. Que questionava a aplicação da lei da anistia aos crimes comuns praticados durante a ditadura civil-militar no Brasil. Incluídos entre esses crimes abusos de autoridade, assassinatos, torturas e estupros. Requeria que a Suprema Corte do país, dando interpretação conforme à Constituição de 1988, declarasse que a anistia concedida pela Lei n. 6.683/79 aos crimes políticos ou conexos não se estendesse aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão, contra opositores políticos, durante o regime militar.
Foi, certamente, um oportunidade histórica que o STF tinha em mãos para dar início ao processo de consolidação da democracia brasileira instruindo, ao coibir os crimes do passado, o país que queremos no futuro. Sem torturas, sem abusos de autoridade, sem o regime militarizado das polícias, sem ações discricionárias e auto indulgentes de governos, legisladores e operadores do direito.
Mas as esperanças de milhares de familiares de torturados, mortos e desaparecidos, ativistas e pesquisadores de direitos humanos, organizações da sociedade civil defensoras dos direitos humanos testemunharam o STF, apoiado na lei de anistia de 1979, recusar o fim da impunidade às graves violações impostas aos cidadãos no passado ditatorial do Brasil.
Por 7 a 2, a ADPF 153 foi rejeitada pelo STF em abril de 2010.
A anistia foi declarada instrumento válido para perpetuar a impunidade aos crimes comuns praticados no período a mando do Estado e por ele organizado e financiado. Assim é, até hoje, no Brasil. Os 2 votos contrários vieram de Ricardo Lewandovski e Ayres Britto.
Meses depois, em novembro de 2010, conheceríamos a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o dos desaparecimentos forçados, no que ficou conhecido como o caso da guerrilha do Araguaia. Em um dos trechos contundentes de sua sentença, em seu parágrafo 128, a CIDH declarou:
Finalmente, salientaram a irrelevância do contexto de criação da Lei de Anistia para o Direito Internacional, pois consideraram que, na medida em ela impeça a persecução dos responsáveis por graves violações de direitos humanos, será contrária às obrigações internacionais do Estado. A Lei de Anistia não foi o resultado de um processo de negociação equilibrada, já que seu conteúdo não contemplou as posições e necessidades reivindicadas por seus destinatários e respectivos familiares. Desse modo, atribuir o consentimento à anistia para os agentes repressores ao lema da campanha e aos familiares dos desaparecidos é deformar a história.”
Sentença que é quase o oposto especular da decisão da corte brasileira.
Sem apoio na jurisprudência dos tribunais nacionais sobre as violações cometidas no período de exceção vigente entre 1964 e 1985, a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos constitui hoje o fundamental apoio legal para ações, sentenças e argumentos contra as graves violações cometidas no passado e suas consequências no presente.
No início desse mês assistimos ao patético julgamento da chapa Dilma-Temer pelo Supremo Tribunal Eleitoral, cujo resultado mais significativo era a possibilidade da interrupção do mandato do atual presidente Michel Temer, hoje com 3% de apoio popular, já que Dilma Roussef já fora impedida em 2016. Sem nenhuma surpresa, semanas antes, todos já conheciam o resultado, chegando ao descalabro de conhecermos os detalhes do placar (4 a 3) a favor da impunidade.
O julgamento foi presidido por um ministro do TSE, flagrado em diálogo altamente suspeito sobre um pedido de apoio a uma lei que endurece punições a abusos de autoridade, cometidos nos processos de investigação de órgão investigativos e outros.
O diálogo entre Aécio Neves e Gilmar Mendes,
fartamente publicizado em maio desse ano, deixa clara a influência do senador sobre o ministro que é instruído, por Aécio, a articular em prol da aprovação da lei que certamente beneficiaria Aécio Neves em futuras investigações.
No telefonema gravado todas as instruções dadas por Aécio Neves são acolhidas com naturalidade pelo ministro que se compromete a seguir as instruções do senador. Flagrante estarrecedor sem qualquer consequência para o ministro Gilmar Mendes que, no mês seguinte, presidirá o julgamento da chapa Dilma-Temer cujo principal risco recai sobre o denunciado e suspeito Michel Temer, com os resultados já conhecidos. ().
Nesse momento os membros do STF, mais uma vez batem cabeça. Não sabem se esvaziam as acusações contra o usurpador Michel Temer ou se contribuem para que se reestabeleça um mínimo de institucionalidade no país que só terá início, todos sabem, com a queda do mais ilegítimo dos presidentes. Enquanto, certamente, isso malas e malas circulam daqui para lá. Enquanto não há regulação no país, cujo governo está infestado de acusados, suspeitos e acuados, muitos se locupletam antes da restauração de alguma ordem, regulação e decência no país, antes do fim da farra, antes do fim da era Temer. O STF não é um tribunal garantidor da democracia, como vimos. De supremos e superiores esses tribunais tem muito pouco.
Freud fez esse alerta há mais de cem anos atrás, em 1913.
Em seu fundamental texto Totem e Tabu, Freud dizia que as leis são herdeiras dos tabus. Exigem obediência mas escondem seus princípios, sua gênese e os interesses que veiculam. Obedecer leis cegamente é entregar aos operadores profissionais a aura de supremos, magnânimos e superiores enquanto todos os demais caminham cabisbaixos, subalternos e ignorantes. Infelizmente ouvimos pouco os grande pensadores. Fazemos colóquios, conferências e cursos inteiros sobre eles, mas, muitas vezes não os levamos a sério.
Desde a publicação de Homo Sacer I, o pensador italiano Giorgio Agamben tem propalado aos 4 ventos : não virá das leis e dos operadores do direito nossa tão aguardada democracia. Não há outro caminho senão trabalhar para construí-la.
Mais uma vez, como sempre, só a soberania, supremacia e superioridade popular nos acena com esperança e alento no futuro.
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