Não podemos dormir tranquilos. Não bastasse a pandemia, a crise econômica e a possibilidade de acordar com a notícia de um óbito de um ente querido, estamos sempre em risco de ver um dos nossos governantes utilizar esses tempos de isolamento social para, sorrateiramente, avançar no desmonte do estado ou na promoção de alterações legislativas sem debate com a sociedade.
O país assistiu estupefato à reunião ministerial de 22 de abril, quando o ministro Ricardo Salles afirmou que o governo Bolsonaro deveria aproveitar a pandemia, momento em que a opinião pública está distraída, para fazer passar a boiada, alterando a legislação ambiental.
Lamentavelmente, a estratégia bolsonarista está fazendo escola, inclusive entre um dos seus atuais maiores desafetos, o governador João Doria. Sob a genérica ementa de “estabelecer medidas voltadas ao ajuste fiscal e ao equilíbrio das contas públicas”, o governador encaminhou à Assembleia Legislativa, em caráter de urgência, o Projeto de Lei 529/2020, uma boiada de fazer inveja a Ricardo Salles.
O projeto de lei tem sido divulgado como se se limitasse à extinção de autarquias e empresas estaduais e à redução do quadro de servidores celetistas estáveis, que trabalham, como afirma a justificativa do PL, “com dificuldade ou sem interesse”, o que já seria bastante. Mas ele é muito mais do que isso. Uma verdadeira manada.
A gestão Doria mistura, em um único projeto de lei, alhos e bugalhos, propondo que o legislativo autorize de uma só vez: a extinção de dez empresas públicas, fundações e institutos de pesquisa e de 12 fundos; a limitação da autonomia financeira e a retirada de fundos das universidades públicas paulistas e da Fapesp; a venda do patrimônio imobiliário do estado e de suas autarquias; a concessão de parques e unidades de conservação à iniciativa privada; o aumento de impostos, como o IPVA, entre dez grupos diferentes de iniciativas polêmicas.
O objetivo declarado do pacote, pomposamente chamado de “Programa de Modernização Administrativa” seria cobrir o déficit orçamentário do estado, estimado em R$ 10,4 bilhões para 2021, ou seja, 4,6% das despesas previstas.
Não se questiona a necessidade do estado equilibrar suas contas, mas a maneira como isso está sendo feito, em um período de isolamento social, sem debate público, misturando temas que nada tem a ver um com outro e extinguindo instituições relevantes sem apresentar alternativas de gestão, é totalmente equivocado.
A proposta está longe de ser uma necessária reforma administrativa do estado. Propõe simplesmente de extinguir instituições relevantes, se limitando a dizer que suas finalidades serão cumpridas por outros órgãos estaduais ou pelo setor privado, sem definir como isso será feito.
Caso, por exemplo, a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), órgão criado há mais de 70 anos com o objetivo de produzir habitação social. A empresa, que já passou por várias fases, vem sendo esvaziada pelas últimas gestões do PSDB, que tem preferido firmar parcerias público privadas, que atendem um número limitado de famílias.
É consenso entre os especialistas que o problema de moradia da população de mais baixa renda, onde se concentra o déficit habitacional, não será equacionado apenas pelo setor privado, requerendo a implementação de programas e ações que apenas uma empresa pública poderá cumprir. Se a CDHU precisa mesmo ser reestruturada e modernizada para que possa ser estratégica para o equacionamento de um dos principais problemas sociais, não é isso que está sendo proposto.
O mesmo pode ser dito, guardadas as especificidades, da Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP), que tem por objetivo planejar e executar as políticas agrária e fundiária.
Já a extinção de vários institutos de pesquisa estaduais, como o Instituto Florestal, a Fundação para o Remédio Popular e a Fundação Oncocentro, mostra que a gestão Doria, nem mesmo na pandemia entendeu o papel do Estado no desenvolvimento científico. A reestruturação e reorganização dessas instituições talvez seja necessária, mas isso deveria ser feito com a participação dos pesquisadores e garantindo a continuidade das atividades em curso e não em um pacote que tem como único objetivo o ajuste fiscal e o desmonte do estado.
Já o capítulo 5 do PL 529, que trata da transferência para o Tesouro Estadual do superávit financeiro apurado em balanço patrimonial das autarquias, inclusive as de regime especial, e das fundações, tem grande impacto na autonomia das universidades estaduais e na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Essas instituições recebem recursos vinculados e gozam de autonomia financeira, podendo planejar suas ações de modo a criarem um superávit destinado a um fundo de reserva, a ser aplicado em investimentos ou em situações emergenciais, embora nos últimos anos, com a crise econômica, as universidades não tenham conseguido gerar um superávit significativo.
No caso da Fapesp, a mais importante agencia de fomento à pesquisa do país, o impacto desse dispositivo é grave, pois a excelência da instituição está baseada na sua autonomia financeira, resultante da receita vinculada que lhe é garantida constitucionalmente. Se o dispositivo for aprovado, ela terá que devolver ao caixa geral do estado os recursos que não tiverem sido utilizados até o final de cada exercício, rompendo com uma política cientifica baseada na autonomia financeira.
No capítulo que trata dos aspectos tributários, entre outros, o PL 529 unifica o IPVA em 4%, eliminando as alíquotas mais reduzidas, aplicadas, por exemplo, para veículos que utilizam combustíveis limpos e com menor emissão de CO2. Trata-se de um grande retrocesso em um momento em que a transição ecológica e a mitigação das mudanças climáticas são questões fundamentais para o futuro do planeta.
Em outro capítulo, é autorizada a concessão para o setor privado de 14 parques estaduais, entre eles o Villa Lobos, o Água Branca e o da Juventude, sem que sejam estabelecidas as condições básicas que garantam o uso público dessas áreas. A autorização para a alienação do patrimônio imobiliário do estado é genérica, não se especificando todos os terrenos e glebas que serão privatizados.
Os temas tratados no PL 529 são tantos que esse espaço é pequeno para uma boiada desse tamanho. Como a Assembleia Legislativa tem a tradição de ser subserviente ao Executivo, não será surpresa se ele for aprovado em meio a um isolamento social que dificulta a mobilização e o debate público.
Artigo publicado no site da Folha de São Paulo em 17 de agosto de 2020
Nabil Bonduki, ex-Secretário de Cultura do Município de São Paulo na gestão de Fernando Haddad; ex-Vereador de São Paulo pelo PT; Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário