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Padre Júlio Lancellotti Para Nobel da Paz - Carta de Jamil Chade pela erradicação da fome


Afonso Borges fez este abaixo-assinado

Prezada Berit Reiss-Andersen, presidente do Comitê Norueguês do Nobel.

Enquanto houver a pobreza, a paz seguirá sendo uma utopia. Enquanto houver a pobreza, a segurança não passa de uma ilusão. Enquanto ela não for erradicada, não há como falar em liberdade ou democracia plena.

Escrevo esta carta para pedir que a senhora considere ao lado dos demais membros do Comitê o nome do padre Júlio Lancellotti, de São Paulo, ao avaliar os candidatos para receber o prêmio Nobel da Paz de 2022. Com suas marretadas, ele não apenas atende diariamente a centenas de pessoas em busca de alimentos e de um cobertor. Seu trabalho é também o de resgatar a dignidade àqueles que perderam tudo, inclusive a sensação de que fazem parte da humanidade.

Hoje, diante de uma das piores crises sociais da história democrática do Brasil, um país que enche o peito para dizer que alimenta 1 bilhão de pessoas pelo mundo constata que 33 milhões de brasileiros passam fome.

O país que comemora ser o sexto maior destino de investimentos externos do mundo é o local onde 17,5 milhões de famílias brasileiras vivem na extrema pobreza e com renda per capita mensal de até R$ 105.

No Brasil, portanto, não falta dinheiro. Mas estamos distantes da paz social e, nesta trilha repleta de desafios, lidar com a desigualdade e a pobreza será o maior ato de construção de uma comunidade de destino.

Numa sociedade racista, injusta, segregacionista e violenta, padre Júlio simboliza uma resposta de esperança. Ao encarar a pobreza e suas correntes amarradas nos tornozelos de tantas pessoas, ele cumpre uma função crítica e corajosa pelas ruas abandonadas pelo estado, por parte da sociedade e pelo mercado.

O meu país não está sozinho neste palco surrealista repleto de incoerência. No mundo, a pandemia e agora a guerra desfizeram 30 anos de avanços sociais e a opressão da pobreza voltou a ser a realidade para milhões de pessoas. Para elas, a única liberdade que lhes sobrou foi a de morrer.

Nesta semana, a Unicef alertou que, a cada minuto, uma criança está sendo jogada pela fome extrema no mundo. Uma por minuto!

Enquanto isso, oito indivíduos detêm praticamente metade da riqueza do planeta, um dado que redefine o conceito de fracasso moral de uma sociedade.

Nos serviços de inteligência, nas consultorias que avaliam riscos e nos corredores da ONU, a pobreza voltou a ser um assunto geopolítico. Todos sabem que o corolário da explosão da miséria é a instabilidade política, revoltas, um aumento da repressão em regimes autoritários e abalos para as democracias.

Portanto, dar um prêmio neste momento a uma pessoa que coloca a pobreza no centro de sua ação é mandar uma mensagem ao mundo de que esse é o único caminho viável se queremos a paz.

Ao colocar sua máscara durante a pandemia e sair ao resgate da população de rua, padre Júlio ainda promove resgate do significado do evangelizador e convoca a sociedade anestesiada a se indignar e agir. Uma marretada contra o ódio e a transformação do amor é uma política pública.

Sua luta tira da escuridão vidas humanas e as escancara uma realidade que muitos optam de forma cínica em não querer ver.

Seu compromisso mexe com as estruturas da sociedade. Uma sociedade que sequer entende que a função de um braço num banco de praça não é a de descansar os braços, mas impedir que alguém sem destino transforme aquele espaço como um raro local de sono e de abraço. No fundo, uma medida de criminalização da pobreza.

O que ele também desperta é a consciência de que a pobreza não é uma fatalidade. Num mundo que gera bilionários e fortunas jamais imaginadas e que alguns montam planos para conquistar o espaço, populações inteiras são escravas da pobreza e estão dispostas a tudo para cumprir uma missão ainda mais ousada que uma viagem para Marte: a de sobreviver na Terra.

Ao longo dos últimos anos, cada vez que me deparei com um muro, seja na fronteira Sul dos EUA, nos enclaves espanhóis no Norte da África ou os arames farpados montados pela agência de migração da Europa, me pergunto: saberão os artífices e arquitetos dessas fronteiras que, do outro lado, o desespero jamais poderá ser parado com um muro?

Mas há também uma esperança e as "veias abertas" do mundo podem ser fechadas. Em 1820, nove em cada dez pessoas viviam na pobreza. Em 2015, o Banco Mundial estimou que, pela primeira vez na história, a taxa de miseráveis ficou abaixo de 10%. Em 30 anos, a China retirou 680 milhões da linha da pobreza.

Não podemos permitir que esses avanços sejam desfeitos em nossa geração. A história não nos poupará e nossos netos nos perguntarão: onde estavam vocês quando a crise chegou?

No início do século 21, o economista Jeffrey Sachs calculou que o drama que afeta 700 milhões de pessoas poderia ser erradicado se o mundo destinasse US$ 175 bilhões por ano ao esforço coletivo durante duas décadas.

Muito dinheiro? Na verdade, são migalhas. O valor era, à época, 1% do PIB somado dos países mais ricos do mundo. Como argumentar que acabar com a pobreza custa caro demais se, em 2020, o mundo destinou 2 trilhões de dólares para a compra de armas?

Entre 2000 e 2019, a produção de alimentos no mundo aumentou em 53%, para uma safra total de 9,4 bilhões de toneladas. O volume é suficiente para alimentar de forma cômoda a mais de 10 bilhões de pessoas. Basta garantir a condimento da justiça.

Senhora, o contrário de um mundo pobre não é um mundo rico. Mas uma sociedade justa. O contrário de um mundo inseguro não é um mundo armado. Mas um mundo onde a pobreza tenha sido erradicada.

Medir o desenvolvimento de um país não é saber em que posição do ranking das maiores economias ele está. Mas como permitimos que alguém ainda seja assassinado pela fome. A história não nos julgará pelo que acumulamos. Mas por como lidamos com seus pobres.

Ao dar o prêmio ao padre Júlio Lancellotti, o Comitê do Nobel mandará uma mensagem poderosa de que a erradicação da pobreza não é uma opção. E sim o caminho mais sólido, rápido e barato para a paz. E a maior conquista da história da Humanidade.

Saudações democráticas,

Jamil Chade

 

Subscrevem esta carta: 

Adriana Falcão

Adriana Rattes

Afonso Borges

Afonso Cruz

Ailton Krenak

Alberto Villas

Alexandra Maia

Alexandre Marino

Aline Bei

Amyr Klink

Ana Maria Machado

Ana Martins Marques

Ana Miranda

Ancelmo Góis

André Sant’anna

Andréa Pachá

Andréia Beltrão 

Antônia Pellegrino

Antonio Calloni

Antônio Carlos Secchin

Antonio Fagundes

Antônio Grassi 

Antonio Maura

Antonio Prata

Antonio Sérgio Bueno

Antônio Torres

Bárbara Paz

Bob Wolfenson

Bruna Lombardi 

Cacá Carvalho

Carla Camurati

Carla Madeira

Carlos Herculano Lopes

Carlos Marcelo

Carola Saavedra

Celso Adolfo

Chico Azevedo

Chico Mendonça 

Chico Pinheiro

Cida Pedrosa

Clarice Sabino 

Claudia Abreu

Claudia Lage

Conceição Evaristo

Conrado Hubner

Cristina Serra

Daniella Zupo

Danilo Miranda

Denise Fraga

Djamila Ribeiro

Dorrit Harazim

Drauzio Varela 

Edney Silvestre

Eliana Alves Cruz

Eliane Brum 

Elisa Ventura

Eltânia André

Eric Nepomuceno

Eric Nepomuceno

Eugênio Bucci

Evandro Affonso Ferreira

Fábio Assunção

Fabricio Carpinejar 

Fernando Bonassi 

Fernando Gabeira

Fernando Morais

Fernando Rabelo

Flávia Andrade Ribeiro

Flávia Oliveira

Fred Melo Paiva

Frei Betto 

Geraldo Carneiro

Gonçalo M. Tavares

Gregório Duvivier

Hugo Monteiro Ferreira

Humberto Werneck 

Iara Mares Machado

Ignácio de Loyola Brandão

Ilan Brenman

Itamar Vieira Junior

Jacques Fux 

Jeferson Tenório

João Candido Portinari

João Melo

Joao Paulo Cuenca

José Carlos de Vasconcelos

José Eduardo Agualusa

Jose Eduardo Gonçalves

José Luis Peixoto 

José Miguel Wisnik

José Pinho

José Santos

José Trajano

Juca Kfouri 

Julia Lemmertz

Julian Fuks

Kakay

Karla Monteiro

Karla Ricco 

Kerison Lopes 

Lelia Wanick Salgado

Leo Cunha

Lilia Schwarcz

Lira Neto

Lívia Garcia-Roza

Lucas Figueiredo

Lúcia Bettencourt

Lúcia Verissimo

Lucrecia Zappi

Luis Fernando Verissimo

Luisa Geisler

Luiz Eduardo Soares

Luiz Fernando Emediato 

Lula Vieira

Malu Mader

Marcelino Freire

Marcelo Rubens Paiva

Marcia Tiburi

Marco Haurélio

Margareth Dalcolmo

Maria Antonieta Cunha

Maria Edina Portinari

Maria Esther Maciel

Maria Homem 

Maria José Amorim

Maria Ribeiro

Maria Valéria Rezende

Marina Bandeira Klink 

Marta Góes

Martha Medeiros

Mary Del Priore

Mary Ventura

Matheus Leitão

Mauro Ventura

Mia Couto

Miguel Paiva

Milton Hatoum

Miriam Leitão

Monja Coen

Nádia Battella Gotlib

Nélida Piñon

Nicolas Behr

Noemi Jaffe

Odilon Esteves

Paloma Jorge Amado

Pasquale Cipro Neto 

Patricia Campos Mello

Patrícia Melo

Patrícia Pillar

Paulo Betti

Paulo Ferreira

Paulo Scott

Paulo Werneck

Pedro Pacífico 

Pierre Ruprecht

Pilar del Río

Randolfe Rodrigues 

Regina Braga

Regina Zappa

Renato Aroeira

Renée Zickman

Ricardo Ramos Filho

Ricardo Setti

Roberto Lima

Rodrigo Lacerda

Rogério Pereira

Rogerio Robalinho

Ronaldo Cagiano 

Ronaldo Correia de Brito

Ronaldo Fraga

Rosa Freire d'Aguiar

Rosiska Darcy de Oliveira 

Rubens Casara

Sérgio Abranches

Silvana Gontijo 

Sílvio Almeida

Simone Paulino

Socorro Acioli

Sueli Carneiro

Suely Machado

Tatiana Salem Levy

Thiago Lacerda

Tiago Ferro

Tina Correia

Tom Farias

Tony Bellotto

Valter Hugo Mãe

Vladimir Safatle

Washington Olivetto

Xico Sá 

Zack Magiesi

Zeca Camargo

Zuenir Ventura