No mundo multipolar no qual entramos, o Brasil será central na luta pelo meio-ambiente e nas novas tecnologias
A Nova Economia Mundial
Artigo de Jeffrey D. Sachs (*), originalmente publicado no jornal italiano La Repubblica em 9/1/23. Traduzido da versão inglesa e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para o Brasil 247
Belém (Pará), Brasil — Inauguro esta nova série de colunas em um Ano Novo e um novo começo para o Brasil, com a posse do Presidente Lula da Silva. Os seus simpatizantes vieram de todo o país, num renascimento da esperança para o Brasil, após quatro anos de um governo desastroso sob o seu antecessor de direita, Jair Bolsonaro, que fugiu do Brasil para a Flórida (EUA) na véspera da posse de Lula. Bolsonaro deixou atrás uma turba que tumultuou prédios dos três poderes federais antes de serem aprisionados em grandes números pela polícia.
As táticas de turba não pararão Lula, nem eles terão um efeito de longo prazo nos EUA, onde as manobras similares de Donald Trump em 6 de janeiro de 2021 também foram impedidas. Em ambos os casos, políticos demagógicos usaram as mídias sociais para irritar uma turba, suprimida em um dia.
A questão real, na minha mente, não é a turba, mas as mudanças mais profundas no mundo que estão gerando tensões crescentes na política e na economia do mundo. As mudanças profundas não podem e não serão impedidas por turbas. O nosso desafio verdadeiro é compreender as mudanças profundas em jogo, de modo que possamos gerenciá-las para o bem comum. Tal compreensão é a meta das minhas futuras colunas.
O maior tumulto é geopolítico. Nós não estamos mais em um mundo conduzido pelos EUA, nem sequer num mundo dividido entre os EUA e o seu rival, a China. Nós já entramos num mundo multipolar, no qual cada região tem as suas próprias questões e seu papel na política global. Nenhum país e nenhuma região sozinha pode mais determinar o destino de outros. Este é um ambiente complexo e barulhento — sem que qualquer país, ou região, ou aliança comandem o resto.
Uma razão pela qual o retorno de Lula à presidência é tão consequente é que o Brasil será um ator-chave regional e global nos próximos anos. Lula trabalhará intimamente com presidentes progressistas de mentes similares no Chile, na Colômbia, na Argentina e em todos os lugares da América do Sul. O Brasil também ocupará a presidência do G20 em 2024, como parte de um período de quatro anos no qual as mais importantes economias emergentes ocupam a presidência do G20 (Indonésia em 2022, Índia em 2023 e a África do Sul em 2025).
O gerenciamento de um mundo multipolar está carregado de dificuldades. Precisamos urgentemente de mais diálogos com outros países e de irmos além da propaganda simplista dos nossos próprios governos. Aqui no Ocidente, estamos sendo bombardeados diariamente com narrativas oficiais ridículas, a maioria delas originando-se de Washington. A Rússia é o mal puro, a China é a maior ameaça ao mundo e só a OTAN pode nos salvar.
Estas estórias ingênuas, espalhadas sem fim pelo Departamento de Estado dos EUA, são grandes obstáculos à resolução de problemas globais. Elas nos prendem em falsas mentalidades e até em guerras que jamais deveriam ter ocorrido e que devem ser paradas por negociações, ao invés de escalações.
Quando aceitarmos a realidade de um mundo multipolar, finalmente conseguiremos resolver problemas que nos iludiram até agora. Em primeiro lugar, nós compreenderemos que alianças militares como a OTAN não oferecem respostas aos desafios reais que confrontamos. Na verdade, as alianças militares são um anacronismo perigoso e não uma fonte verdadeira de segurança nacional ou regional. Ao final de contas, foi a tentativa dos EUA de expandir a OTAN à Geórgia e à Ucrânia que detonou as guerras na Geórgia (em 2010) e na Ucrânia (de 2014 até hoje). Nem tampouco lograram atingir os seus objetivos os bombardeios da OTAN de 1999 em Belgrado, nem os quinze anos da missão falida no Afeganistão, nem o bombardeio da Líbia em 2011.
Tampouco a China é a ameaça grave que é retratada atualmente no Ocidente. Os EUA tentam fingir que ainda vivemos num mundo conduzido pelos EUA e que a China é uma farsante perigosa que precisa ser parada. Mas a realidade é diferente. A China é uma civilização antiga de 1,4 bilhão de pessoas (quase uma de cada cinco pessoas no mundo) que também tem como almeja ter altos padrões de vida e de excelência tecnológica. Nós não resolveremos os nossos problemas globais tentando “conter” em vão a China, mas sim através do comércio, da cooperação e, sim, também competindo economicamente com a China.
Outros grandes desafios globais estão alhures: os profundos perigos da catástrofe ambiental; as crescentes desigualdades nas nossas sociedades; e o avanço das novas tecnologias que podem interromper o mundo, se estas tecnologias não forem aparelhadas e controladas adequadamente.
O Brasil é o epicentro do desafio ambiental. Será que a Amazônia, constituindo a metade das florestas tropicais do mundo, pode ser salva? Lula chegou ao poder prometendo fazer exatamente isso. Ele conquistou os votos dos estados amazônicos do Brasil. Globalmente, a Europa está na liderança ambiental com o Acordo Europeu Verde. A mais importante oportunidade geopolítica da Europa é encorajar as outras regiões, incluindo a União Africana, a China, a Índia, as Américas e outras, para adotarem os seus próprios acordos. Esta é uma tarefa muito melhor para a Europa do que expandir a OTAN, lutar uma guerra sem fim na Ucrânia e confrontar a China.
O Brasil também é o epicentro da desigualdade, tendo um dos graus mais altos de desigualdade no mundo. Originalmente, esta desigualdade foi criada pelo imperialismo europeu que suprimiu os povos indígenas e escravizou milhões de africanos. Os descendentes deles continuam a pagar o preço. A justiça social é a vocação de Lula e a nossa vocação global, após séculos de injustiça racial e social.
O Brasil também pode ser o epicentro das novas tecnologias. Por exemplo, um líder na nova bioeconomia, na qual as maravilhas da Amazônia e a biodiversidade do Brasil não sejam destruídas para ter mais fazendas de gado, mas, em lugar disso, para produzir novos remédios que salvem vidas, alimentos nutritivos (como o açaí que agora está crescendo no mundo todo), ou de biocombustíveis avançados para a aviação verde.
A mudança tecnológica talvez seja a condutora mais profunda da mudança global. Precisamos das novas tecnologias para confrontar as crises do clima, da fome, da educação e da saúde. No entanto, nós também sofremos com as novas tecnologias digitais quando estas são mal-usadas — como para mobilizar turbas ou os drones assassinos armados na Ucrânia. Pode bem ser que a biotecnologia avançada tenha criado o vírus que causa a Covid-19 (nós ainda não o sabemos). Confrontamos a cada dia as interrupções e inequalidades causadas pela inteligência artificial e pela rotatividade nos empregos.
A confluência das mudanças globais, interrupções e perigos é surpreendente. As soluções estão na compreensão, na cooperação e na resolução de problemas. Uma melhor compreensão da Economia do Novo Mundo será a meta desta coluna nos meses vindouros.
(*) Jeffrey D. Sachs é professor universitário e diretor do Centro para o Desenvolvimento Sustentável (Center for Sustainable Development) da Universidade de Columbia (New York) – onde ele dirigiu o Earth Institute (Instituto da Terra) entre 2002 e 2016. Ele é o presidente da Rede de Soluções Sustentáveis de Desenvolvimento da ONU (UN Sustainable Development Solutions Network), presidente da Comissão de COVID19 da Lancet, copresidente do Conselho de Engenheiros para a Transição Energética (Council of Engineers for the Energy Transition), Comissário da Comissão para o Desenvolvimento da Banda Larga da ONU (UN Broadband Commission dor Development), acadêmico da Pontifícia Academia de Ciências Sociais do Vaticano (Pontifitial Academy of Social Sciences at the Vatican), e Professor Emérito Tan Sri Jeffrey Cheah da Universidade de Sunway. Ele serviu como Conselheiro Especial de três secretários-gerais da ONU e atualmente serve como Advogado das Metas Sustentáveis de Desenvolvimento (SDG — Sustainable Development Goals) da ONU, trabalhando sob a direção do atual secretário-geral da ONU, António Guterres. Passou vinte anos como professor da Universidade de Harvard, onde recebeu os seus títulos de bacharelato, mestrado e doutorado. Sachs foi agraciado com 40 doutorados honorários e os seus prêmios recentes incluem o Prêmio Tang de 2022 para o Desenvolvimento Sustentável; a Legião de Honra, por decreto do presidente da República Francesa; e a Ordem da Cruz do Presidente da Estônia. O seu livro mais recente é 'The Ages of Globalization: Geography, Technology, and Institutions' (2020).
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