
O assassinato de Marielle mostra que é um engano proclamar que vai dar errado. Já deu errado
O assassinato da vereadora Marielle abriu as comportas dos reservatórios de estupidez acumulados nas usinas dos ululantes nativos.
As turbinas das redes sociais derramaram torrentes de invencionices preconceituosas.
Inundaram os territórios da brutalidade com clamores que acusavam a politização do assassinato, lançando queixas contra menosprezo por outras mortes igualmente trágicas.
Entre os milhares de mortes anônimas e a morte da vereadora Marielle só existe um descalabro: a ausência do Estado capaz de exercer o monopólio da violência, impor a cobrança de impostos dos aquinhoados e prover a prestação de serviços públicos (repito: públicos), indispensáveis à sobrevivência de uma sociedade civilizada.
Estamos numa regressão civilizatória e cultural, como atesta a multiplicação de oposições binárias, como essa entre a morte de tantos e da vereadora. Comparar mortes é um ato de inumanidade.
O abismo em que a sociedade brasileira está mergulhando não tem fundo, porque o mergulho só pode ser contido pela compreensão das condições necessária para a construção da vida civilizada em uma sociedade complexa, com funções, papéis e modos de existência diferentes.
Estamos assistindo às desgraças do stalinismo de direita, ou seja, à igualação pelos calcanhares.
No festival de agressões mentirosas à memória de Marielle, sobressaíram as postagens (é isso mesmo?) de três funcionários do Estado.
À desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro Marília Castro Neves associaram-se a juíza do Espírito Santo Joana Feu Rosa e Washington Lee Abe, comandante do 5º Comando Regional da Polícia Militar do Paraná.
É legítimo perguntar se o Brasil dos autodenominados "homens de bem" não estaria prestes a enveredar pelos descaminhos da regressão civilizatória.
Ao ler e ouvir as manifestações daqueles três servidores do Estado, tenho a sensação de experimentar um fenômeno social e político que ultrapassa os limites dos conflitos inescapáveis da sociedade moderna entre direita e esquerda, conservadores e progressistas.
Tomo a liberdade de considerar a resposta da desembargadora.
Diante das reações e comentários às suas levianas inverdades, sentenciou Sua Excelência: "Eu comentei a morte de Marielle como cidadã".
Sim, uma cidadã investida da prerrogativa de interpretar a lei, julgar, condenar ou absolver.
Trata-se, portanto, de uma cidadã dotada do poder de restringir a liberdade de outros cidadãos.
A resposta da desembargadora, as postagens da juíza capixaba e do policial paranaense revelam muito mais do que permitem suas vociferações conservadoras.
Eles não se comportam como agentes do Estado, necessariamente vinculados a códigos que estabelecem prerrogativas e deveres.
Em razão de suas funções, esses agentes do Estado estão impedidos de reivindicar a condição de meros cidadãos.
Investidos dos poderes de vigiar e punir, devem suportar as restrições funcionais e guardar suas manifestações privadas ao recôndito de suas intimidades.
Em sua obra magna, O Processo Civilizador, Norbert Elias investiga a concentração do monopólio da força no Estado moderno.
"Ao se formar o monopólio da força, criam-se espaços sociais pacificados que normalmente estão livres dos atos de violência. (Nessas sociedades) o indivíduo é protegido principalmente contra ataques súbitos, contra a irrupção da violência física em sua vida. Mas, ao mesmo tempo, é forçado a reprimir em si mesmo qualquer impulso emocional para atacar outra pessoa... Ocorre uma mudança 'civilizadora' do comportamento."
No entanto, é ilusório imaginar que a mudança civilizatória é irreversível.
Peter Gay incita os pensadores da sociedade a considerar as relações estabelecidas por Freud entre biografia e cultura na sociedade de massas:
"Os estudiosos da sociedade, sem excluir os escritores imaginativos, têm certamente sabido há bastante tempo que em grupos os indivíduos podem retornar a estados primitivos da mente, sujeitar a sua vontade a líderes, desconsiderar restrições e o ceticismo sensível que a educação cultivou neles tão dolorosamente".
A "partidarização" ou a particularização da atividade policial e da prestação da Justiça aproxima rapidamente as sociedades modernas das práticas totalitárias que assolaram o mundo dito civilizado na primeira metade do século XX. É o que demonstram Herbert Marcuse e Franz Neumann em suas obras sobre o tema.
A invasão insidiosa dos interesses partidários nos órgãos encarregados de vigiar e punir não tem outro resultado senão transformar essas burocracias de Estado, primeiro em instrumentos do poder descontrolado e, depois, em poderes fora de controle. É um engano proclamar que vai dar errado. Já deu errado.
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